A encantadora de gatos do Campo de Santana [fragmento]
Ele odiava
mofo e teias, eram o tipo de coisa que lhe dava engulhos. E ele sabia que a
própria palavra “engulhos” – até mais do que sentir engulhos – era pura
frescura, mas a verdade é que ele era assim. Ou assim decidiu que seria depois
de muito se aventurar em náuseas silenciosas. Mas mesmo odiando mofo e teias,
tinha que alcançar aquele exemplar raro das Canções
do António Botto lá atrás dos manuais de bricolagem, dos tratados de
Tordesilhas, das enciclopédias de capa dura – atrás de tudo, atrás inclusive do
mofo e das teias. Fechou os olhos, prendeu a respiração, mergulhou por baixo
das bancadas de livros mal equilibrados e rastejou. Esticou o braço e foi no
tato. Pimba! Pegou. Rastejou de volta, abriu os olhos e soltou o ar. Procurava
esse livro há tempos, jamais conseguira encontrá-lo novinho numa livraria
novinha sem mofo e teias. Decididamente não entendia os que diziam haver algum
charme nesses sebos do centro do Rio.
- Quanto é?
- Cem reais.
- Mas eu quase
morri sufocado, arrisquei minha vida para achá-lo jogado lá embaixo das
estantes. Vai ver você nem lembrava mais que ele existia.
- Ainda bem
que o senhor me fez o favor de lembrar... Cem reais!
Enquanto o sovina
embrulhava o livro naquele papel chinfrim rosa claro, abriu a carteira para
pegar o dinheiro e lembrou que ainda precisava passar no mercado, comprar ração
para o gato e uma coisinha qualquer para a noite. Um desses pratos semiprontos
e uma verdura para uma salada já estariam de bom tamanho. Tudo está de bom
tamanho quando se aprende a adaptar-se à solidão. Nela nada é de mais ou de
menos, tudo parece moldar-se com precisão aos espaços vazios: na falta
absoluta, ninguém suspeita dos vãos. Parou à saída do sebo e caçou os óculos
escuros na bolsa. Colocou-os e sentiu-se bem. E protegido. Vamos lá, cidade! Olhar
para o que quer que fosse, para quem quer que fosse, sem que seus olhos o
denunciassem, dava uma despudorada sensação de segurança. Atravessou a ruazinha
de paralelepípedos e ganhou a calçada oposta.
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