A estória de Tertuliano
Tertuliano era uma pessoa
inteira. Para quem aperto de mão faltava algo, precisava abraçar. E abraçar com
tapinhas nas costas. E ria. Ria muito. Ria do dentro para o fora e vice-versa:
como que respirasse. O corpo arqueado se empertigava para, logo depois, arquear
de novo, ondulando-se à sua risada. Tertuliano era a alegria da rua e do bairro.
Havia de tudo um pouco nas mãos, nas rugas e nas estórias de Tertuliano. As
mãos quase tudo fizeram para o sustento, não havia ofício que não conhecessem.
As rugas davam conta dos muitos filhos, netos e bisnetos que a leveza dos anos
carreou. E as estórias, que tinham por testemunhas as mãos e as rugas,
emprestavam uma contrição quase de rosário a quem as ouvia, tamanha a atenção
que crianças, moças, mulheres, rapazes e homens feitos lhes davam. O pouco que
aprendera a ler e escrever agigantava-se quando ele contava suas estórias. O
aedo que respirava riso e que ria respiração era capaz de encantar até os
gravetos e as pedras da rua. Tinha o dom de contar coisas de quando o mundo
ainda não existia com tanta elegância que quem o escutasse acabava por
acreditar que o mundo talvez um dia não tivesse existido deveras. Dalva, todo
orgulhosa, gostava de comentar:
- Meu velho sabe coisas que até
Deus duvida.
E benzia a boca após o
comentário, de medo que Deus ouvindo e, invejando a sapiência do marido, o
amarasse em rochedo para que abutres lhe comessem as tripas de noite.
No dia em que Tertuliano morreu,
era uma tarde dessas morosas. Como se o bairro, as casas, os bichos, os
gravetos, as pedras da rua e até o ar decretassem um luto de horas para
choramingar surdamente a ausência do riso respiração. As nuvens, vendo aquilo,
resolveram ajudar a disfarçar lágrimas. Naquela noite, poucas horas após seu
enterro, choveu. Choveu muito. Há quem jure, até hoje, que a chuvarada forte
batendo nas vidraças lembrava o som ofegante de quem respirasse compassadamente...
como se estivesse rindo. Há quem jure.
(Edmilson Borret – 31/10/2013, editado em 04/04/2014)