sábado, 5 de janeiro de 2019


A estória de Tertuliano



Tertuliano era uma pessoa inteira. Para quem aperto de mão faltava algo, precisava abraçar. E abraçar com tapinhas nas costas. E ria. Ria muito. Ria do dentro para o fora e vice-versa: como que respirasse. O corpo arqueado se empertigava para, logo depois, arquear de novo, ondulando-se à sua risada. Tertuliano era a alegria da rua e do bairro. Havia de tudo um pouco nas mãos, nas rugas e nas estórias de Tertuliano. As mãos quase tudo fizeram para o sustento, não havia ofício que não conhecessem. As rugas davam conta dos muitos filhos, netos e bisnetos que a leveza dos anos carreou. E as estórias, que tinham por testemunhas as mãos e as rugas, emprestavam uma contrição quase de rosário a quem as ouvia, tamanha a atenção que crianças, moças, mulheres, rapazes e homens feitos lhes davam. O pouco que aprendera a ler e escrever agigantava-se quando ele contava suas estórias. O aedo que respirava riso e que ria respiração era capaz de encantar até os gravetos e as pedras da rua. Tinha o dom de contar coisas de quando o mundo ainda não existia com tanta elegância que quem o escutasse acabava por acreditar que o mundo talvez um dia não tivesse existido deveras. Dalva, todo orgulhosa, gostava de comentar:

- Meu velho sabe coisas que até Deus duvida.

E benzia a boca após o comentário, de medo que Deus ouvindo e, invejando a sapiência do marido, o amarasse em rochedo para que abutres lhe comessem as tripas de noite.

No dia em que Tertuliano morreu, era uma tarde dessas morosas. Como se o bairro, as casas, os bichos, os gravetos, as pedras da rua e até o ar decretassem um luto de horas para choramingar surdamente a ausência do riso respiração. As nuvens, vendo aquilo, resolveram ajudar a disfarçar lágrimas. Naquela noite, poucas horas após seu enterro, choveu. Choveu muito. Há quem jure, até hoje, que a chuvarada forte batendo nas vidraças lembrava o som ofegante de quem respirasse compassadamente... como se estivesse rindo. Há quem jure.

(Edmilson Borret – 31/10/2013, editado em 04/04/2014)