sexta-feira, 21 de dezembro de 2018






COMO SE OUVISSE MÚSICA [fragmento]


1.
Não sei se ele olhou para o relógio de pulso, se ele tinha um relógio no pulso, se ele teve pulso, ou se consultou no visor do celular ou na tela do computador a hora exata em que decidiu saltar. Porque se o tivesse feito, veria que eram dezessete horas e quarenta minutos e que a essa hora não se deve saltar de um prédio. Às dezessete horas e quarenta minutos, a senhora do sexto andar já terminou de tomar seu chá e está arrumando o lacinho do seu poodle, ou talvez um shih tzu, para a caminhada pelos arredores e encontrará, ao descer pelo elevador, a vizinha do oitavo andar que lhe contará sobre o sujeito que se atirou do décimo primeiro andar cujo corpo se encontra numa poça de sangue na calçada em frente e esta senhora decidirá não mais passear com seu poodle, ou talvez com seu shih tzu, amaldiçoando o acontecimento que a impediu de mostrar para toda a vizinhança e para o dono da banca de jornal e para o segurança das lojas americanas o lacinho recém comprado no petshop onde ontem ela levou seu shih tzu, ou talvez seu poodle, para tomar banho. Ou talvez, e isso se explica pela necessidade vital das pessoas de aproveitarem momentos de grande comoção para ostentar opiniões e aquisições, ela decida ainda assim manter seus planos, não obstante a vizinha do oitavo andar a tivesse prevenido da cena chocante que a esperava na calçada, e levar o poodle, shih tzu talvez, para o passeio que agora mais seria um deleite mórbido da senhora do que um alívio do cãozinho pela mijada ou cagada que há tanto esperava. Às dezessete horas e quarenta minutos, a mãe que largou do trabalho como gerente de uma loja de uma grande rede de moda prêt-à-porter às dezessete horas num shopping do outro lado da cidade foi buscar os filhos na escola da rua de cima próxima ao prédio e os traz arrastando suas mochilas de rodinha pelas calçadas esburacadas de pedras portuguesas que no atrito com as rodinhas das mochilas produzem o ruído incômodo das calçadas no fim de tarde nas áreas de grande concentração populacional.


Para ler o restante, adquira o livro Diário dos vivos e outros escritos, publicado pela Editora Penalux, set. 2019, no site a seguir:

https://www.editorapenalux.com.br/loja/contos/diario-dos-vivos-e-outros-escritos



segunda-feira, 17 de dezembro de 2018


Litografias e Gravuras Bruscamente Tolhidas pela Inquisição


era um istmo
finíssimo
e em volta
o mar

era um átimo
inóspito
nas revoltas
de amar

era um étimo
helênico
que volta
a estremar



era um óbito

(Edmilson Borret – 17/12/2018)

sábado, 15 de dezembro de 2018

Freya suffering when her husband suddenly disappeared. This became a famous love story in Norse mythology





A encantadora de gatos do Campo de Santana [fragmento]




Ele odiava mofo e teias, eram o tipo de coisa que lhe dava engulhos. E ele sabia que a própria palavra “engulhos” – até mais do que sentir engulhos – era pura frescura, mas a verdade é que ele era assim. Ou assim decidiu que seria depois de muito se aventurar em náuseas silenciosas. Mas mesmo odiando mofo e teias, tinha que alcançar aquele exemplar raro das Canções do António Botto lá atrás dos manuais de bricolagem, dos tratados de Tordesilhas, das enciclopédias de capa dura – atrás de tudo, atrás inclusive do mofo e das teias. Fechou os olhos, prendeu a respiração, mergulhou por baixo das bancadas de livros mal equilibrados e rastejou. Esticou o braço e foi no tato. Pimba! Pegou. Rastejou de volta, abriu os olhos e soltou o ar. Procurava esse livro há tempos, jamais conseguira encontrá-lo novinho numa livraria novinha sem mofo e teias. Decididamente não entendia os que diziam haver algum charme nesses sebos do centro do Rio.
- Quanto é?
- Cem reais.
- Mas eu quase morri sufocado, arrisquei minha vida para achá-lo jogado lá embaixo das estantes. Vai ver você nem lembrava mais que ele existia.
- Ainda bem que o senhor me fez o favor de lembrar... Cem reais!
Enquanto o sovina embrulhava o livro naquele papel chinfrim rosa claro, abriu a carteira para pegar o dinheiro e lembrou que ainda precisava passar no mercado, comprar ração para o gato e uma coisinha qualquer para a noite. Um desses pratos semiprontos e uma verdura para uma salada já estariam de bom tamanho. Tudo está de bom tamanho quando se aprende a adaptar-se à solidão. Nela nada é de mais ou de menos, tudo parece moldar-se com precisão aos espaços vazios: na falta absoluta, ninguém suspeita dos vãos. Parou à saída do sebo e caçou os óculos escuros na bolsa. Colocou-os e sentiu-se bem. E protegido. Vamos lá, cidade! Olhar para o que quer que fosse, para quem quer que fosse, sem que seus olhos o denunciassem, dava uma despudorada sensação de segurança. Atravessou a ruazinha de paralelepípedos e ganhou a calçada oposta.

Para ler o restante, adquira o livro Diário dos vivos e outros escritos, publicado pela Editora Penalux, set. 2019, no site a seguir:




segunda-feira, 10 de dezembro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

XXII. Epílogo

peguei o café e me dirigi ao escritório. precisava arrumar aquela bagunça também. ao passar pela sala, da janela a vi no quintal. vem aqui fora! fazer o quê? conversar, oras. já disse, não tenho tempo para você. continuei em direção ao escritório. demorei quase meio dia para colocar os livros e discos nas estantes de volta. e mais algumas horas arrumando os quadros, os retratos de família sobre a escrivaninha, os papéis e cartas nas gavetas. perdi mais tempo nessa última tarefa. as poucas cartas que ele escreveu eram abertas e relidas à medida que eu as arrumava. precisava comer. creuza não viera e os de casa tinham desaparecido. passando pela sala para voltar à cozinha, batidas na porta. ela não tinha ido embora ou voltou. posso entrar? fique aí mesmo onde está. vai me fazer esperar mais quanto tempo? pois não me espere: vá! sabe que não posso. então fique aí!

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sexta-feira, 7 de dezembro de 2018



diário dos vivos [fragmento]

XXI.

e a terra tremeu. acordei no susto. não era sonho, a terra estava tremendo forte. os quadros caíam das paredes. meus objetos eram lançados da prateleira. do meu quarto, ouvia os gritos de desespero dos de casa. era preciso vestir a calça: não se enfrenta um tremer da terra pelado da cintura pra baixo. os meus pés não achavam as pernas da calça. a terra resolvera beber mais do que eu. e ficamos eu e ela nesse jogo do não me empurra até que finalmente consegui me vestir. na sala, os de casa seguravam-se nos móveis. o que vamos fazer, tio? vai tudo desmoronar. calma! essa casa resiste: meu pai a construiu desde os alicerces com as próprias mãos. dez minutos depois, parou.

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segunda-feira, 3 de dezembro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

XX.

é de estranhar que ainda haja vida por aqui. logo aqui onde ela é tão menosprezada. a vida é vingativa, sabe? se você não a paparica, ela te dá as costas, te abandona. é como deus. tem algo de ontologicamente infantil nisso: a vida, assim como deus, não sabe ainda lidar com perdas. mas eles vieram, os de casa. e por isso os chamo os de casa. porque eles pertencem a essa casa. essa casa que meu pai construiu com as próprias mãos desde o alicerce. essa casa era cheia de vida. essa história de fazer pouco caso da vida começou sei lá quando. acho que quando soube do abismo. se não precisamente ali, talvez mais para trás, quando já o pressentia. o verbo abismar quer dizer muita coisa. meu pai dizia que quem diz muita coisa pode às vezes não estar dizendo nada. não é o caso do verbo abismar: ele diz dizendo. daí que ele pode significar algo caindo ou jogado no abismo, mas pode também querer dizer o estado de maravilhamento diante de algo. pode significar o ato de se devotar a algo, mas também o ato de se recolher, de se ensimesmar. maravilhar-se, devotar-se, recolher-se, ensimesmar-se. é como abismar-se. eu me abismo. tu te abismas. nós nos abismamos. um verbo pronominal. que diz também de uma reflexividade. e eu sempre vi as ações reflexivas como algo que se dobra sobre quem as pratica. como uma manta, uma cobertura, descrevendo um arco. abismar-se é dobrar o abismo sobre si.

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sábado, 1 de dezembro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

XIX.

bingo! mais uma! assim você vai acabar com todas as moscas do meu bar, homem! quando estava sozinho na birosca, esse era um dos meus passatempos favoritos. sossega! essa tua birosca tem tanta mosca que não haveria copos no mundo para capturá-las. foi um treinamento de anos, na verdade. saber a hora exata de emborcar o copo. há muita física e matemática envolvidas nisso. um pouco de aerodinâmica e de esperteza também: tem que deixar uns respingos de pinga cair sobre a mesa. não sei se moscas sentem o efeito do álcool, mas desde que comecei a me esmerar na captura delas, essa tem sido parte da minha tática. aproveitar o momento em que a mosca, estaria tonta?, abaixa a guarda. talvez esteja pensando na vida, na carniça em que se refastelou mais cedo. seja o que for, pensamento ou tontura, essa é a hora. e então tem-se a mosca presa sob um domo. ela não se debate como os outros bichos quando cativos. faz, no máximo, voar de uma parede a outra do copo nos primeiros minutos. depois, dá-se conta de que está presa e relaxa. talvez, em sua experiência de mosca, ela saiba que uma hora ou outra o copo será levantado. ou alguma outra mosca já lhe tenha contado que, nesta birosca, um velho sádico as prenda sob um copo por alguns instantes. vai saber o que as moscas andam conversando.

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