terça-feira, 30 de junho de 2020


A morte ou coisa parecida




E eu inda sou bem moço pra tanta tristeza
Deixemos de coisas, cuidemos da vida

Fagner


rachaduras na parede. ai de nós! se fixo os olhos por muito tempo nas rachaduras, sou arrastada pelas mínimas fendas, tragada pelo cimento do reboco e pelos tijolos, e me sinto mais presa que algum dia já tenha sido, emparedada. as casas e suas paredes envelhecem, como envelhecem a cara e o corpo da gente. e tudo se empareda. se algum dia, em minha velhice, eu sentir saudades de alguma coisa, acho muito improvável que seja desta pobreza em que vivo. mas que também ando tão desatenta às coisas, que acho que não chegarei a ter a idade da velhice para sentir saudades, aquela idade em que nos sentamos conformadamente em uma poltrona e agradecemos pela saúde dos filhos e netos. ando tão desatenta às coisas, que nunca sei onde as coisas vão dar. uma desatenção que pode tornar fatal qualquer atravessar de rua, qualquer buraco numa calçada, qualquer encontro inesperado: uma quarentena dos sentidos – todos eles anestesiados. não sei se teria sido mais prático atirar-me nas águas da baía, no tempo em que ainda podíamos sair de casa, no tempo em que eu ainda não tinha os sentidos anestesiados. e a água tépida ou gelada faria a diferença, relaxariam ou retesariam meus nervos: na segunda opção, provocando uma espécie de desconforto que me desencorajaria do intento. agora o inverno já vem vindo e não quero, deus me livre, morrer de água gelada. não agora. não pensem que estou louca. ainda não estou: eu sei que o mais esperado é que eu apenas dissesse que não quero morrer, mas quem sabe exatamente o que quer na vida? a minha colega de trabalho parecia saber o que queria pelo menos para aquela noite, um mês atrás, e debochava de mim, porque eu disse que não ficaria no centro para a roda de samba. tão jovem e já tão velha! pensei em lhe responder que se eu fosse velha, poderia ao menos sentir saudades; mas respondi apenas que não sabia sambar. uma preta, nascida em madureira, que não sabe sambar? vê se pode isso, meu deus! e gargalhava. e ela achava normal gargalhar disso. e talvez até eu mesma já me acostumasse e começasse a achar normal, como me acostumei a me tornar ausente desse tipo de discussão. vê se não dá mole com esses gringos que ainda ficaram do carnaval! não viu as notícias lá de fora? você tá louca, mulher? os gringos é que pagam cerveja a rodo. a minha colega era nova no trabalho, sabia pouco de mim e eu pouco dela: somos pretas as duas. ela mora em jacarepaguá e eu em campo grande. ela não nasceu em madureira e sabe sambar. a casa em que nasci, em madureira, não tinha rachaduras na parede. desde muito pequena, no entanto, me acostumei às rachaduras nos afetos, veladas ou não, o que também me fazia sentir-me emparedada. mudar para campo grande foi uma decisão minha, quando comecei a transição. pela minha mãe, viveríamos até morrer no mesmo quintal, junto ao restante da família. um dia eles vão ter que te aceitar, ela repetia. minha mãe estava magoada com a família, mas termos que passar a pagar aluguel não estava em seus planos. para eles eu já morri, mãe, ou o daniel morreu. então não fazia mais sentido viver no mesmo quintal, junto ao restante da família. ela aceitou e me deu razão. vou pra onde você for então. você é minha única filha.

 

pouco tempo depois de a quarentena ter sido decretada, fomos dispensadas do trabalho na loja, no mesmo dia, eu e a minha colega que não nasceu em madureira mas sabe sambar. fiquem em casa!, foi só o que disseram. três semanas em casa e eu tenho a sensação de que as rachaduras na parede parecem maiores. minha mãe diz que, um dia, tudo vai voltar ao normal. ela não percebe que a normalidade agora não se reconhece no normal de antes. o vírus penetrou no que era a normalidade e a fez rachar de dentro para fora. acho que minha mãe não repara nas rachaduras como eu. acho mesmo que ela não me vê, embora eu saiba que ela me ama muito. porque se ela me visse de verdade, ela veria que tudo passa por uma redefinição. me ama, eu sei, mas é mãe: mães têm medo. o seguro-desemprego ainda não saiu, a ajuda do governo também não, o aluguel vence daqui a uma semana, a ração do gato acabou há três dias. é seguro você sair na rua? e quando foi, mãe? vi na televisão que tem um país lá fora que estão atirando nas pessoas que andam pelas ruas. aqui também atiram, mãe, só que por outro motivo. e não tem como adiar mais: precisamos comer e o gato também. sua tia me contou que lá na igreja que ela vai estão dando cestas básicas. se a gente ainda morasse lá. mas não moramos mais, mãe. e, além disso, nessas igrejas eles dão com uma mão e tiram com a outra. minha mãe ainda sentia saudades de morar em madureira, sobretudo agora que as ruas estão todas quase desertas. lá, pelo menos, as ruas, embora também desertas, eram conhecidas desde a infância. eu não gosto de estar aqui emparedada, estive emparedada quase a vida inteira. e precisamos comer. daqui até o mercado, são só uns quinze minutos a pé. coloco as luvas descartáveis, a máscara, pego a bolsa, a carteira e conto o dinheiro que ainda restou. antes de sair, reparo mais uma vez nas rachaduras na parede. cada vez que preciso sair à rua, quando retorno, parece que elas aumentaram. nada escapa às rachaduras, ao desgaste, ao estranhamento. ai de nós!

 

tudo fechado! todas as portas arriadas! com exceção do mercado e de algumas farmácias. as poucas pessoas na rua andam encolhidas, apavoradas. a vida e os movimentos ao redor me parecem mais espessos. tento manter a calma e não me entregar ao mesmo movimento dessas pessoas, semelhante ao de répteis mascarados que se arrastam na espessura deste tempo estranho. a um metro e meio umas das outras, elas se olham com desconfiança na fila do mercado. para mim olham com mais desconfiança ainda. será que elas me adivinham? ou é mesmo só porque sou preta? talvez nem tudo tenha fugido à normalidade.

 

demorei mais do que pretendia na fila para pagar as compras. daqui a pouco é a hora do almoço. no fundo do prato, comida e tristeza. medo, medo, medo, medo, medo, medo. duas sacolas em cada mão. como atender esse celular tocando logo agora? deve ser a colega do trabalho que não nasceu em madureira, mas que sabe sambar – uma das poucas pessoas que ainda me ligam. todos os dias, pela manhã, ela acha que apresenta os sintomas da nova doença; à noite, liga de novo dizendo que era coisa da cabeça dela. ela pode esperar até eu chegar em casa. tenho pressa. mais quinze minutos a pé até em casa. quinze minutos é muito tempo. qualquer tempo numa quarentena acaba sendo muito tempo. tempo que dá tempo, até, de lembrar dele: coisa que eu vinha evitando. a vida no mesmo quintal, junto ao restante da família, foi a minha vida até onde me lembro de uma realidade que era muito pouco; ainda assim era a minha realidade. crescemos juntos, primos. muitas vezes tivemos a sorte de ter uma infância feliz, apesar dos moleques da rua que desde sempre mexeram comigo. acho que eles, os moleques, achavam uma ousadia eu querer ser feliz, sendo diferente deles. ele dizia que sempre iria me proteger dos moleques. e eu sempre o amei por isso. e não só por isso. ele dizia que eu era só dele, ninguém mais me tocaria: nem os moleques da rua, nem os moleques e adultos do quintal. quando se é criança e adolescente, ainda se tolera que dois primos estejam sempre juntos pra cima e pra baixo, como unha e carne, descobrindo as coisas que nessa idade se descobrem. por volta dos dezessete anos, foi quando começaram os fuxicos na família. ao ponto de a minha tia um dia chegar e dizer na cara da minha mãe: o daniel não é boa companhia para o meu filho. e a gente foi obrigado a parar de andar sempre juntinhos pra cima e pra baixo. minha tia tratou de arrumar uma namoradinha pra ele, lá na igreja que ela frequentava. cada vez que eu via os dois juntos, o daniel dentro de mim morria um pouco. foi quando decidi pela transição: não era só no quintal que eu não cabia mais. e foi quando a família passou a me achar uma aberração. e a vida no mesmo quintal, junto ao restante da família, começou a se tornar insuportável.

 

não temos homem em casa. vivemos agora só eu e minha mãe. por isso sou eu que tenho que me arriscar a sair nas ruas: ela já tem idade, está no grupo de risco da nova doença. o risco do meu grupo desde sempre foi outro: existir. você não viu na televisão que todo mundo deve ficar em casa? onde eu estou, estanco, como congelada: as duas sacolas em cada mão, a cabeça baixa. as ruas deveriam estar desertas. é mesmo a voz dele tanto tempo depois? por que não atendeu o celular, quando te liguei agora há pouco? ele adianta o passo e se coloca na minha frente. levanto a cabeça. sim, é ele! como você sabia onde eu estava? não sabia. estava indo até sua casa e por acaso te encontrei no caminho. me deixa te ajudar com as sacolas! mas você também não devia estar pelas ruas e tão longe de casa, ainda mais agora que está casado. eu sei. inventei uma desculpa em casa, precisava te ver. por quê? tenho medo de que demore muito para que tudo volte ao normal, precisava te ver para ter aquela sensação de antes. então você também não vê as rachaduras? do que você está falando, daniel? daniela, por favor! ah, desculpe. mas posso, ao menos, ajudar com sacolas? te acompanho até em casa. com essas ruas desertas, nunca se sabe, né? ele não está usando luvas nem máscara: as mãos continuam lindas, assim como a boca. seu olhar, no entanto, está mais sereno; como se nunca tivéssemos nos separado, como se ele não tivesse mais medo de nada, nem da minha tia, nem do que o mundo fale. e, de repente, as ruas parecem mais desertas ainda que no caminho da ida ao mercado. somos só eu e ele, como antes, em nossos esconderijos da infância e adolescência. sinto uma enorme vontade de beijá-lo, como antes. ninguém veria, as portas e janelas fechadas. minha tia, lá em madureira, não veria, nem a esposa dele veria. o mundo está parado. esta rua deserta em campo grande é parte de um mundo em suspenso, em que tudo se tornou mais espesso, e as pessoas viraram répteis. eu gosto muito de como você está agora. que transformação, hein! é, mas eu ainda não sei sambar. uma pretinha que não sabe sambar? e rimos aos montes, como antes. como chegamos a este ponto? vai saber. senti muito a sua falta. eu também. o caminho de volta, que deveria levar quinze minutos como o da ida, já chega a quase quarenta minutos. e por mim demoraria mais. mas eu preciso chegar em casa. está quase na hora do almoço. a gente se olha, se toca e se cala. moço, moço, moço, moço, moço, moço. fico aqui, não vou entrar. a tia não vai poder me ver. é, acho melhor mesmo. pego as sacolas de volta e ainda fico um tempo parada no portão, enquanto o vejo se afastar rua afora. lindo, como antes.

 

por que não atendeu o celular, quando te liguei agora há pouco? os olhos da minha mãe estão inchados, quando entro em casa, como se ela estivesse chorando há horas. calma, mãe! demorei porque tinha fila no mercado. e não atendi o celular porque estava com as duas mãos ocupadas com as sacolas. não precisava ficar nervosa e chorar por isso. não é por isso que estou chorando, sua tia ligou. largo as sacolas no chão, preocupada. será que ela adivinhou que ele veio atrás de mim? e o que ela queria agora, mãe? seu primo. o que tem ele? tiveram que correr com ele ontem, às pressas, para o hospital. mas não tinha vaga, tudo lotado. ele estava muito mal, já não conseguia nem respirar direito. não resistiu. faleceu agora há pouco. corro até o portão. quero ter a certeza de que minha mãe se enganara, ela tinha entendido errado o telefonema. olho para a rua por onde, minutos antes, eu o vira se afastar, na esperança de ainda poder ver seu vulto quebrando a esquina lá longe. a rua está vazia. filha, volta pra dentro! você já se arriscou demais na rua hoje, não quero perder você também.

 

que desatenção medonha foi essa que me tomou? que coisa descabida! um carro poderia ter me atropelado, quando eu atravessasse uma rua. eu poderia ter torcido, ou mesmo quebrado, um pé num buraco da calçada. que desatenção foi essa a minha? acho que não chegarei a ter idade para sentir saudades. o peito deserto, a mão parada, lacrada, selada, molhada de medo. nada vai voltar ao normal, mãe! que desatenção! os corações ficarão em quarentena por mais tempo que imaginávamos, mãe. os corações vão virar pedra, mãe. pedra em que se bate até aparecerem rachaduras. olho de novo para a parede. ai de nós!


Edmilson Borret - abril/2020

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Ela disse que é o fim


Paul Chan - Intituled (Drawing the 5th light) - 2006





“Veja bem!
Nosso caso é uma porta entreaberta
E eu busquei a palavra mais certa
Vê se entende o meu grito de alerta”

Gonzaguinha





só temos mais três minutos, ela disse. bem baixinho, mas sei que foi isso que ela disse, sei que foi isso que ouvi. mas o que dá para falar em três minutos? inabalável, ela só suspira, o que vem a ser o mesmo que dizer não-há-mais-nada-a-fazer. e ela não faz mais nada. só não acende um cigarro porque não fuma. nunca fumou. ou pelo menos não ativamente com os próprios dedos e boca, quando muito passivamente com os próprios pulmões e narinas. quem mandou se casar com um sujeito que queima uns três maços por dia? mas aqui neste lugar, nem eu nem ela, que nunca fumou, podemos fumar. e, sentada ao meu lado, ela abaixa a cabeça até os joelhos e segura os próprios tornozelos. na impossibilidade de um cigarro, faço igual. mas não enfio a cabeça entre os joelhos como ela, fico olhando para ela. certamente ela não quer isso. tá na cara, dela ou minha?, que ela não quer isso. eu também não quero isso, tá na minha cara. olha pra mim!, eu digo, quando na verdade queria mesmo era dizer: olha pra mim, porra! ela tira a cabeça de entre os joelhos e passa a me encarar também. não importa o que você diga, é o fim. e sua voz é sussurrada nessa posição quase fetal em que estamos. ela ainda tem um pouquinho de mousse no canto da boca, que eu limpo com o dedo. ela sorri quando lambo meu dedo com aquele restinho de talvez nosso último jantar juntos. ela sorri, nem tudo está perdido. dois minutos e meio agora, querido! e sua voz volta a ficar sussurrada e ela não sorri mais. que ela, e não sei se todas as outras mulheres também, passa de um sorriso a um não-sorriso em questão de segundos, e vá você entender como isso se dá em um tão curto espaço de tempo.

 

em um tão curto espaço de tempo eu tenho que dizer a essa mulher sentada ao meu lado o quanto eu a amo? é isso que ela espera de mim? mas essa nossa viagem de férias, depois de anos, foi para lhe mostrar justamente isso. foi um sacrifício? foi. largar assim o escritório. mas o que o sujeito não faz, quando a esposa desfere à queima-roupa um lacrimejante meu-bem-a-gente-nem-sequer-viaja-mais? talvez ela espere que eu admita que ela sempre esteve com a razão. por que trabalhar tanto, de segunda a sábado às vezes, varando a noite quase sempre, e perder tanta coisa legal dessa vida? e por que também só agora estou preocupado em talvez lhe dar razão? será que ela tem razão? tá bom, reconheço: sempre fui ambicioso, sempre quis crescer naquela merda de empresa. e cresci. caralho, como eu cresci! temos uma boa vida, um apartamentão de frente para a lagoa rodrigo de freitas. e quando dá, eu a levo para jantar nos restaurantes mais caros, que são os que ela mais aprecia. nos fins de semana sempre dá, depois do cinema, do teatro ou do show, que é sempre ela que escolhe. não importa se a lotação para o dia já esteja esgotada. com o monte de gente importante que conheço, sempre consigo dois ingressos. porque eu a amo. e portas sempre se abrem quando se tem dinheiro e quando se ama. e por isso eu trabalhava tanto. eu precisava agradá-la, satisfazê-la. eu precisava mostrar que a amava. tinham aqueles urubus lá da empresa que sempre perguntavam por ela. e eles eram podres de ricos, cobriam suas esposas de luxo e eu precisava fazer o mesmo com a minha. mas eles percebiam que eu era diferente deles. na hora do almoço, eles sempre davam suas escapulidas para trair as esposas com alguma esposa de outro amigo podre de rico. eu não, eu preferia ligar para a minha e, quem sabe, quebrar a rotina com um convite inesperado para um almoço. ela quase nunca podia: sempre num shopping ou no salão ou no clube com as esposas dos meus amigos podres de ricos. isso eu admito que admirava nela: sabia como ninguém estabelecer os laços sociais com la crème de la crème do high society carioca. e tudo isso não sei se ela está ouvindo. porque também não sei se estou lhe dizendo ou se estou só pensando. porque, em situações como esta, tudo passa muito rápido pela cabeça da gente: vá lá saber o que a gente pensa e o que a gente diz, ou o que a gente diz e não pensa, ou pensa que pensa e não diz. quinze anos de casados para terminar desta maneira mais besta? dois minutos e quinze segundos agora!

 

calma, calma! não tão rápido assim! ela vira o rosto para o outro lado, mas mantém a cabeça encostada nos joelhos, e presta atenção no alvoroço do ambiente. vira de novo o rosto para mim e está serena. ela destoa do ambiente. quando fala, é sempre sussurrando. como essa mulher pode ficar tão serena assim? eu aqui desesperado, inconformado, buscando um fio de esperança. não quero que acabe assim! amor, tudo vai ficar bem. olha só, acredite em mim! nossos rostos estão tão próximos que eu me vejo refletido em suas retinas, que eu sinto o seu hálito de camarão gratinado misturado com mousse de limão. eu quis pedir o vinho mais caro, mas ela disse que esta noite não. não é coisa de homem isso de intuição, mas desde cedo, no café da manhã no hotel, eu vinha percebendo uma nuvem de desesperança em seu olhar. aquele tipo de olhar que nós homens nunca questionamos, porque sabemos que está pressentindo algo que escapa ao nosso entendimento de homem e nos restringimos a elogiar o croissant e a geleia. e agora, no jantar, ela não quis vinho. mais uma vez como se estivesse pressentindo algo. e vejo a mesma nuvem de desesperança do café da manhã neste momento em seus olhos cujas retinas me refletem. e tenho pouco mais de dois minutos para lhe dizer que não é o fim, para lhe provar que a amo. mas ainda busco as palavras para aplacar a sua descrença e lhe dizer que não é o fim. eu que sempre fui tão bom com as palavras, eu que conseguiria vender um terreno na lua para os incautos do mercado imobiliário, eu estou buscando palavras e elas não vêm. talvez eu mesmo já esteja começando a acreditar que é o fim. puta que pariu, não! tenho que continuar tentando. dois minutos agora, querido!

 

amor, você está hiperventilando. segura a minha mão! eu estou aqui com você, eu sempre estive. e agora ela dá um meio sorriso que me dói mais que tudo, dói pra cacete, dói mais que o não-sorriso e que poderia ser traduzido por não-fale-bobagens-a-essa-altura. não, eu quase nunca estive “aqui”. e agora estou querendo estar nestes dois últimos minutos que foi o tempo que ela disse que ainda temos. eu queria gritar um puta-que-pariu-mas-que-merda a plenos pulmões. gritar talvez a tirasse deste quase torpor. se fosse pra terminar tudo assim, que pelo menos berrássemos. ela só faz um não com os olhos. pra quê? vai adiantar de quê? não vale a pena. desisto da ideia de berrar e tento manter a linha. então procure não respirar tão rápido assim. não tira os olhos dos meus olhos, por favor, eu te peço. esquece esse alvoroço em volta. aqui somos eu e você. tá vendo? você já está mais calma, parou de hiperventilar. isso é só uma tempestade, todo mundo já passou por isso. quando passar, você vai ver, tudo vai voltar ao normal. eu vou trabalhar menos, te juro. a gente pode até pensar naquele bebê. você ainda quer ter um bebê, não quer? então. eu mudo meu escritório para o quarto de hóspedes, não preciso de tanto espaço assim. e no lugar do escritório a gente monta o quarto do bebê. você sabe do medo que sempre tive de ter um filho porque sempre achei que nunca seria um bom pai. aquela infância difícil que tive, te contei tantas vezes. mas agora eu juro, eu toparia. então se acalma! senão você vai voltar a hiperventilar. mas se você não quiser transformar o escritório no quarto do bebê, a gente pode mudar de apartamento também. você sempre reclamou mesmo do cheiro ruim da lagoa, as janelas sempre fechadas. você vai ver, tudo vai ser diferente. um minuto e meio agora!

 

um minuto e meio e ele está tentando me convencer de que não é o fim. a coisa toda poderia acontecer sem esse drama típico dos homens sem colhões, quando eu insisto que já era, que tudo vai acabar. sempre foi assim, não seria diferente agora: ele vai continuar tentando me convencer do contrário. por que ele está passando esse dedo na minha boca? que nojento, agora ele está lambendo o dedo! será que ele não consegue ver como tudo está agora? quinze anos de casamento, mais os cinco de namoro, e a palavra final tem sempre que ser a dele. e falar de bebê agora? esse idiota já parou para reparar com quantos anos estou? só agora ele vem me falar em ter um bebê? ai, como eu queria mandá-lo pra puta que o pariu. mas pra quê? vai adiantar de quê? não vale mais a pena. e esse olhar dele dentro do meu! isso só está me angustiando mais. e esta posição é incômoda, vou hiperventilar de novo com toda a certeza. só uma tempestade, todo mundo já passou por isso. vontade de dar um tapa na cara desse filho da puta me chamando de amor. aqui mesmo, na frente de todo mundo, pra ver se ele acorda para a realidade das coisas. mas já tem muito alvoroço em volta. um bebê agora. conto para ele dos dois abortos que fiz sem ele saber? a desculpa era sempre a infância difícil que ele teve. e que ele precisava trabalhar muito para ser alguém na vida. frouxo mentiroso! a esposa do médico dele me contou em segredo e pediu que eu jurasse nunca revelar para ele que eu sabia. ele é e sempre foi estéril. como esse idiota pensa em ter um bebê agora? será que ele passou a acreditar em milagres justamente agora? bem, ele acredita em muitas coisas ridículas. ele acredita mesmo que está contribuindo para o desenvolvimento econômico do país. um país que ele nem nunca conheceu de verdade. pra ir à padaria, ele vai de carro. praia de ipanema? mas nem pensar! olha a quantidade de pobres que tomou conta daquilo. sim, traí ele sim, mais de uma vez. quando casamos, eu ainda o amava. aí ele começou a ficar cada vez mais importante, escrotamente importante. e cada vez mais rico. da parte do cada vez mais rico não posso dizer que tenho alguma coisa do que reclamar: quem não gosta do luxo? subiu como um foguete naquela empresa. caralho, como ele subiu! reunião quase toda noite com empresários de todo o mundo. e não diferia em nada do típico clichezão de executivo: chegava em casa, cheirava uma carreira, reclamava do dia, do mercado, das ações, tomava uns três uísques, depois um banho, jantava, desabava na cama e roncava a noite inteira. foi quando comecei a dar para os amigos dele que não tiveram infância difícil e não precisavam se matar de trabalhar para provar que eram merecedores de estar onde estavam. às vezes, coisa rara, ele até me ligava no início da tarde, com a voz melosa de quem queria fazer uma surpresa à esposinha aqui, para propor que almoçássemos juntos. mas, quase sempre nessas ocasiões, algum amigo dele podre de rico já tinha se antecipado com uma proposta semelhante. eu inventava um encontro qualquer com a esposa de algum amigo dele podre de rico, quando, na verdade, o amigo dele podre de rico estava me comendo naquele exato momento. e ele não para de me olhar com essa cara de panaca que nada percebe. não, querido, não vai ficar tudo bem. é o fim. aceita isso! então só mais um minuto agora, querida?

 

em um minuto a gente não faz nada. só aceita que é o fim. depois de quinze anos, é o fim. gente, e o que é essa cara dele de apaixonado ainda? que idiota! não, eu não vou me iludir com suas palavras. e eu tô bem, precisa segurar a minha mão não. quem está desesperado aqui é você. aliás, ele esteve desde o café da manhã. e eu sabia por quê. e por isso ele quis pedir vinho neste que talvez seja nosso último jantar juntos. ele sempre foi medroso mesmo: medo de altura, medo de lugares fechados, medo de voltar a ser pobre, medo até de gente. eu tinha visto a sua ansiedade no café da manhã no hotel. e me dava um tédio desgraçado aquela cara dele de cagão. mas eu disfarçava, sempre disfarcei bem. e ele talvez estivesse achando que era desânimo, desesperança, coisa de mulherzinha, coisa de dondoca. porque ele fez de mim uma dondoca, esse filho de uma puta. uma vaca de uma dondoca que dava para seus amigos executivos podres de ricos. eu nunca gostei daquele apartamentão e não é por causa do cheiro ruim que vem da lagoa, e sim porque eu tive que dar o cu para um dos amiguinhos dele podres de ricos. só assim o amiguinho dele podre de rico lhe venderia o apartamento por um preço bem abaixo do mercado. eu não precisava ter dado o cu pro amiguinho dele podre de rico. ele que se fodesse de trabalhar até juntar a grana para pagar o preço que o apartamento realmente valia. mas o amiguinho escroto dele precisava se livrar do imóvel, a receita estava no pé, e ele precisava de um apartamentão como aquele para mostrar para os seus amigos executivos podres de ricos que ele também era um deles. o que é um cu doído por três dias, quando é um apartamentão na lagoa que está em jogo? foi a primeira vez que eu o traí. e não posso dizer que foi fácil: não tanto pela dor no cu, que depois até tomei gosto por essa coisa de ser a cadelinha dos amigos dele podres de ricos, mas porque eu ainda o amava, amava-o muito. que coisa mais ridícula isso, eu já tê-lo amado um dia!

 

mas que importância tem tudo isso agora? eu estou tentando dizer para esse filho da puta que é o fim. o medroso não quer aceitar, vem me falar de amor e bebês para me convencer do contrário. não por mim, que não acredito muito nesse papo de segunda chance, mas por ele. se bobear, já se borrou todo nas calças. eu queria um voo com escalas, o trajeto seria diferente. mas ele decidiu por este voo direto. disse que queria chegar cedo em casa, para amanhã estar bem disposto para voltar ao escritório. uma semana de férias. uma semana depois de anos! queria provar que ainda me amava. vê se pode! quando eu reclamei que a gente nem viajava mais, eu não estava pensando em passar uma semana num resort caríssimo e chato. um hotel mais modesto perto do mar, comer camarão no espeto e assistir ao pôr-do-sol com os pés enterrados na areia já estaria de bom tamanho. ele foi avisado de que este voo direto passaria por áreas de turbulência. mas ele não quis o com escalas. o voo com escalas era por uma companhia que não lhe foi muito bem recomendada pelos seus amigos executivos podres de ricos. já esta companhia do voo direto servia um jantar muito mais gourmet. e então estamos aqui, a cabeça colada nos joelhos, um olhando no olho do outro e sentindo o hálito de camarão gratinado e mousse de limão um do outro. e em menos de meio minuto o piloto vai tentar um pouso de emergência no meio da mata. uma turbina já foi embora, a outra deixa um rastro de fogo pelo céu. é o fim, eu tenho certeza disso. mas se sobrevivermos, eu juro que finalmente dou um pé na bunda desse babaca.



Edmilson Borret - janeiro/2020