terça-feira, 30 de junho de 2020


A morte ou coisa parecida




E eu inda sou bem moço pra tanta tristeza
Deixemos de coisas, cuidemos da vida

Fagner


rachaduras na parede. ai de nós! se fixo os olhos por muito tempo nas rachaduras, sou arrastada pelas mínimas fendas, tragada pelo cimento do reboco e pelos tijolos, e me sinto mais presa que algum dia já tenha sido, emparedada. as casas e suas paredes envelhecem, como envelhecem a cara e o corpo da gente. e tudo se empareda. se algum dia, em minha velhice, eu sentir saudades de alguma coisa, acho muito improvável que seja desta pobreza em que vivo. mas que também ando tão desatenta às coisas, que acho que não chegarei a ter a idade da velhice para sentir saudades, aquela idade em que nos sentamos conformadamente em uma poltrona e agradecemos pela saúde dos filhos e netos. ando tão desatenta às coisas, que nunca sei onde as coisas vão dar. uma desatenção que pode tornar fatal qualquer atravessar de rua, qualquer buraco numa calçada, qualquer encontro inesperado: uma quarentena dos sentidos – todos eles anestesiados. não sei se teria sido mais prático atirar-me nas águas da baía, no tempo em que ainda podíamos sair de casa, no tempo em que eu ainda não tinha os sentidos anestesiados. e a água tépida ou gelada faria a diferença, relaxariam ou retesariam meus nervos: na segunda opção, provocando uma espécie de desconforto que me desencorajaria do intento. agora o inverno já vem vindo e não quero, deus me livre, morrer de água gelada. não agora. não pensem que estou louca. ainda não estou: eu sei que o mais esperado é que eu apenas dissesse que não quero morrer, mas quem sabe exatamente o que quer na vida? a minha colega de trabalho parecia saber o que queria pelo menos para aquela noite, um mês atrás, e debochava de mim, porque eu disse que não ficaria no centro para a roda de samba. tão jovem e já tão velha! pensei em lhe responder que se eu fosse velha, poderia ao menos sentir saudades; mas respondi apenas que não sabia sambar. uma preta, nascida em madureira, que não sabe sambar? vê se pode isso, meu deus! e gargalhava. e ela achava normal gargalhar disso. e talvez até eu mesma já me acostumasse e começasse a achar normal, como me acostumei a me tornar ausente desse tipo de discussão. vê se não dá mole com esses gringos que ainda ficaram do carnaval! não viu as notícias lá de fora? você tá louca, mulher? os gringos é que pagam cerveja a rodo. a minha colega era nova no trabalho, sabia pouco de mim e eu pouco dela: somos pretas as duas. ela mora em jacarepaguá e eu em campo grande. ela não nasceu em madureira e sabe sambar. a casa em que nasci, em madureira, não tinha rachaduras na parede. desde muito pequena, no entanto, me acostumei às rachaduras nos afetos, veladas ou não, o que também me fazia sentir-me emparedada. mudar para campo grande foi uma decisão minha, quando comecei a transição. pela minha mãe, viveríamos até morrer no mesmo quintal, junto ao restante da família. um dia eles vão ter que te aceitar, ela repetia. minha mãe estava magoada com a família, mas termos que passar a pagar aluguel não estava em seus planos. para eles eu já morri, mãe, ou o daniel morreu. então não fazia mais sentido viver no mesmo quintal, junto ao restante da família. ela aceitou e me deu razão. vou pra onde você for então. você é minha única filha.

 

pouco tempo depois de a quarentena ter sido decretada, fomos dispensadas do trabalho na loja, no mesmo dia, eu e a minha colega que não nasceu em madureira mas sabe sambar. fiquem em casa!, foi só o que disseram. três semanas em casa e eu tenho a sensação de que as rachaduras na parede parecem maiores. minha mãe diz que, um dia, tudo vai voltar ao normal. ela não percebe que a normalidade agora não se reconhece no normal de antes. o vírus penetrou no que era a normalidade e a fez rachar de dentro para fora. acho que minha mãe não repara nas rachaduras como eu. acho mesmo que ela não me vê, embora eu saiba que ela me ama muito. porque se ela me visse de verdade, ela veria que tudo passa por uma redefinição. me ama, eu sei, mas é mãe: mães têm medo. o seguro-desemprego ainda não saiu, a ajuda do governo também não, o aluguel vence daqui a uma semana, a ração do gato acabou há três dias. é seguro você sair na rua? e quando foi, mãe? vi na televisão que tem um país lá fora que estão atirando nas pessoas que andam pelas ruas. aqui também atiram, mãe, só que por outro motivo. e não tem como adiar mais: precisamos comer e o gato também. sua tia me contou que lá na igreja que ela vai estão dando cestas básicas. se a gente ainda morasse lá. mas não moramos mais, mãe. e, além disso, nessas igrejas eles dão com uma mão e tiram com a outra. minha mãe ainda sentia saudades de morar em madureira, sobretudo agora que as ruas estão todas quase desertas. lá, pelo menos, as ruas, embora também desertas, eram conhecidas desde a infância. eu não gosto de estar aqui emparedada, estive emparedada quase a vida inteira. e precisamos comer. daqui até o mercado, são só uns quinze minutos a pé. coloco as luvas descartáveis, a máscara, pego a bolsa, a carteira e conto o dinheiro que ainda restou. antes de sair, reparo mais uma vez nas rachaduras na parede. cada vez que preciso sair à rua, quando retorno, parece que elas aumentaram. nada escapa às rachaduras, ao desgaste, ao estranhamento. ai de nós!

 

tudo fechado! todas as portas arriadas! com exceção do mercado e de algumas farmácias. as poucas pessoas na rua andam encolhidas, apavoradas. a vida e os movimentos ao redor me parecem mais espessos. tento manter a calma e não me entregar ao mesmo movimento dessas pessoas, semelhante ao de répteis mascarados que se arrastam na espessura deste tempo estranho. a um metro e meio umas das outras, elas se olham com desconfiança na fila do mercado. para mim olham com mais desconfiança ainda. será que elas me adivinham? ou é mesmo só porque sou preta? talvez nem tudo tenha fugido à normalidade.

 

demorei mais do que pretendia na fila para pagar as compras. daqui a pouco é a hora do almoço. no fundo do prato, comida e tristeza. medo, medo, medo, medo, medo, medo. duas sacolas em cada mão. como atender esse celular tocando logo agora? deve ser a colega do trabalho que não nasceu em madureira, mas que sabe sambar – uma das poucas pessoas que ainda me ligam. todos os dias, pela manhã, ela acha que apresenta os sintomas da nova doença; à noite, liga de novo dizendo que era coisa da cabeça dela. ela pode esperar até eu chegar em casa. tenho pressa. mais quinze minutos a pé até em casa. quinze minutos é muito tempo. qualquer tempo numa quarentena acaba sendo muito tempo. tempo que dá tempo, até, de lembrar dele: coisa que eu vinha evitando. a vida no mesmo quintal, junto ao restante da família, foi a minha vida até onde me lembro de uma realidade que era muito pouco; ainda assim era a minha realidade. crescemos juntos, primos. muitas vezes tivemos a sorte de ter uma infância feliz, apesar dos moleques da rua que desde sempre mexeram comigo. acho que eles, os moleques, achavam uma ousadia eu querer ser feliz, sendo diferente deles. ele dizia que sempre iria me proteger dos moleques. e eu sempre o amei por isso. e não só por isso. ele dizia que eu era só dele, ninguém mais me tocaria: nem os moleques da rua, nem os moleques e adultos do quintal. quando se é criança e adolescente, ainda se tolera que dois primos estejam sempre juntos pra cima e pra baixo, como unha e carne, descobrindo as coisas que nessa idade se descobrem. por volta dos dezessete anos, foi quando começaram os fuxicos na família. ao ponto de a minha tia um dia chegar e dizer na cara da minha mãe: o daniel não é boa companhia para o meu filho. e a gente foi obrigado a parar de andar sempre juntinhos pra cima e pra baixo. minha tia tratou de arrumar uma namoradinha pra ele, lá na igreja que ela frequentava. cada vez que eu via os dois juntos, o daniel dentro de mim morria um pouco. foi quando decidi pela transição: não era só no quintal que eu não cabia mais. e foi quando a família passou a me achar uma aberração. e a vida no mesmo quintal, junto ao restante da família, começou a se tornar insuportável.

 

não temos homem em casa. vivemos agora só eu e minha mãe. por isso sou eu que tenho que me arriscar a sair nas ruas: ela já tem idade, está no grupo de risco da nova doença. o risco do meu grupo desde sempre foi outro: existir. você não viu na televisão que todo mundo deve ficar em casa? onde eu estou, estanco, como congelada: as duas sacolas em cada mão, a cabeça baixa. as ruas deveriam estar desertas. é mesmo a voz dele tanto tempo depois? por que não atendeu o celular, quando te liguei agora há pouco? ele adianta o passo e se coloca na minha frente. levanto a cabeça. sim, é ele! como você sabia onde eu estava? não sabia. estava indo até sua casa e por acaso te encontrei no caminho. me deixa te ajudar com as sacolas! mas você também não devia estar pelas ruas e tão longe de casa, ainda mais agora que está casado. eu sei. inventei uma desculpa em casa, precisava te ver. por quê? tenho medo de que demore muito para que tudo volte ao normal, precisava te ver para ter aquela sensação de antes. então você também não vê as rachaduras? do que você está falando, daniel? daniela, por favor! ah, desculpe. mas posso, ao menos, ajudar com sacolas? te acompanho até em casa. com essas ruas desertas, nunca se sabe, né? ele não está usando luvas nem máscara: as mãos continuam lindas, assim como a boca. seu olhar, no entanto, está mais sereno; como se nunca tivéssemos nos separado, como se ele não tivesse mais medo de nada, nem da minha tia, nem do que o mundo fale. e, de repente, as ruas parecem mais desertas ainda que no caminho da ida ao mercado. somos só eu e ele, como antes, em nossos esconderijos da infância e adolescência. sinto uma enorme vontade de beijá-lo, como antes. ninguém veria, as portas e janelas fechadas. minha tia, lá em madureira, não veria, nem a esposa dele veria. o mundo está parado. esta rua deserta em campo grande é parte de um mundo em suspenso, em que tudo se tornou mais espesso, e as pessoas viraram répteis. eu gosto muito de como você está agora. que transformação, hein! é, mas eu ainda não sei sambar. uma pretinha que não sabe sambar? e rimos aos montes, como antes. como chegamos a este ponto? vai saber. senti muito a sua falta. eu também. o caminho de volta, que deveria levar quinze minutos como o da ida, já chega a quase quarenta minutos. e por mim demoraria mais. mas eu preciso chegar em casa. está quase na hora do almoço. a gente se olha, se toca e se cala. moço, moço, moço, moço, moço, moço. fico aqui, não vou entrar. a tia não vai poder me ver. é, acho melhor mesmo. pego as sacolas de volta e ainda fico um tempo parada no portão, enquanto o vejo se afastar rua afora. lindo, como antes.

 

por que não atendeu o celular, quando te liguei agora há pouco? os olhos da minha mãe estão inchados, quando entro em casa, como se ela estivesse chorando há horas. calma, mãe! demorei porque tinha fila no mercado. e não atendi o celular porque estava com as duas mãos ocupadas com as sacolas. não precisava ficar nervosa e chorar por isso. não é por isso que estou chorando, sua tia ligou. largo as sacolas no chão, preocupada. será que ela adivinhou que ele veio atrás de mim? e o que ela queria agora, mãe? seu primo. o que tem ele? tiveram que correr com ele ontem, às pressas, para o hospital. mas não tinha vaga, tudo lotado. ele estava muito mal, já não conseguia nem respirar direito. não resistiu. faleceu agora há pouco. corro até o portão. quero ter a certeza de que minha mãe se enganara, ela tinha entendido errado o telefonema. olho para a rua por onde, minutos antes, eu o vira se afastar, na esperança de ainda poder ver seu vulto quebrando a esquina lá longe. a rua está vazia. filha, volta pra dentro! você já se arriscou demais na rua hoje, não quero perder você também.

 

que desatenção medonha foi essa que me tomou? que coisa descabida! um carro poderia ter me atropelado, quando eu atravessasse uma rua. eu poderia ter torcido, ou mesmo quebrado, um pé num buraco da calçada. que desatenção foi essa a minha? acho que não chegarei a ter idade para sentir saudades. o peito deserto, a mão parada, lacrada, selada, molhada de medo. nada vai voltar ao normal, mãe! que desatenção! os corações ficarão em quarentena por mais tempo que imaginávamos, mãe. os corações vão virar pedra, mãe. pedra em que se bate até aparecerem rachaduras. olho de novo para a parede. ai de nós!


Edmilson Borret - abril/2020

6 comentários:

  1. Achei interessante a transposição desse mito brasileiro popular de visita pro espírito para a realidade de um amor trans.
    Buscou dignidade no popular, o contrário do que às vezes é feito.Busca-se dignidade nas noções da elite...

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    1. Que bom que tenha gostado, Vinicius Tobias (Larvas Poesia).

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  2. Textos que fazem viajar, em realidade, e nos tocam profundamente. "Ai de nós"... Melhor para nós! Faz-se necessário. Louvável literário!:)

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