quarta-feira, 18 de setembro de 2019

📘 "Diário dos vivos & outros escritos", contos. Autor: Edmilson Borret.
💡Projeto gráfico: Ricardo Paixão (Arte da capa concebida pelo próprio autor)
📜 SOBRE A OBRA [✒️ por Eduardo Marinho]: Conheci Edmilson Borret na rua, expondo meu trabalho em Santa Teresa, no centro do Rio. Ele me deu um exemplar do seu então recém-lançado livro de poemas, "Entre cão e lobo" (Ed. Penalux, 2018) [...] Poesia densa e funda. [...] Agora leio os contos deste seu novo livro: a mesma profundidade, a mesma carga de sugestões e subterrâneos, vida interna dos bastidores dos sentimentos, a delicadeza em plena grosseria e as grosserias das delicadezas em permanente contraste, ironias dando ligas aos constatamentos óbvios da vida bem observada. [...] Qualquer lugar é o mesmo lugar para os sentires humanos em suas relações com o tempo, com o espaço e com os seres. Do Campo de Santana “até o subúrbio é uma vida”. Com muitas vidas nessa “vida”. Milhões e milhões de vidas. Cada uma com seus sentires, seus pensares, seus agires, seus seres.

Texto de orelha escrito pelo querido Eduardo Marinho e prefácio escrito pela igualmente querida Elika Takimoto.


COMO ADQUIRIR MEUS LIVROS







COZINHANDO DORES [fragmento]



            1.
Lena percebera talvez só há pouco tempo que era reparada na rua quando passava. Essa percepção chegou junto com os quarenta anos recém completados. Lena sempre fora distraída, do tipo que não reparava nas pessoas nem no tempo. E disso não fazia matéria de culpa ou ressentimento. Tinha, aliás, a indubitável convicção de que ressentimentos eram um luxo que não lhe cabia. Como essa saia. Mas ela cabia há pouco tempo atrás. E viu-se no espelho. Não chegou a ser um susto, mas algo trincou na imagem refletida. Analisou mudanças, fuçou cada distorção da imagem que até então tivera de si. Não teve medo do que viu, nem alegria, nem tristeza. Só viu. E ver já era muito. Decidiu não pôr aquela saia para ir trabalhar, escolheu outra. Mas já era tarde: agora ela reparava. E mesmo assim, precisava sair à rua, tinha que ir trabalhar. O mesmo trajeto para o trabalho de todos os dias, em anos, foi, naquele dia, o mais longo de todos os dias, em anos. Lena percebera que era reparada na rua. Algo havia trincado na imagem. E Lena passou a fuçar a distorção de ser vista. De ver.




Para ler o restante, adquira o livro Diário dos vivos e outros escritos, publicado pela Editora Penalux, set. 2019, no site a seguir:

https://www.editorapenalux.com.br/loja/contos/diario-dos-vivos-e-outros-escritos








CARTA AO COLSEI (à la Caio F. Abreu)

Coslei, meu querido amigo Coslei, hoje é sexta-feira e acabei de ler seu livro Subversões. Ele chegou-me na quarta-feira. Larguei o Jessé Souza e peguei o Alexandre Coslei (sim, troco de homens com a mesma facilidade com que troco de cueca). Mas o fato é que o Jessé pode esperar: não declarei ainda meu amor por ele, portanto não há traição consumada. Por você sim eu já havia declarado meu amor inúmeras vezes nas redes sociais. Tanto o é, que lhe pedi que escrevesse o texto da orelha do meu Entre cão e lobo. Tarefa que você aceitou de pronto e muito me orgulhou.

Sempre falávamos em marcar um almoço ou um café num pé sujo do centro da cidade. Mas só falávamos. E esse encontro se ia protelando ad infinitum. E você me falava: “Sou um carretel”. Eu até pensava em te zoar: o cara ainda fala em carretel, é das antigas. Mas aí me dava conta de que se fizesse isso, também estaria me zoando, por entender a metáfora e me colocar igualmente entre “os das antigas”. Mas então você esteve no lançamento do Entre cão e lobo, em janeiro deste ano. Nos falamos rápido e nos abraçamos. Eu estava meio inebriado pelo “sucesso” daquela noite. Quando te procurei de novo no salão, cadê você? Já tinha ido, saiu à francesa. Tua cara fazer isso. Antes do lançamento, você era o tipo do cara “nunca te vi, sempre te amei”. E calma, véi! Não estou te xavecando. E também, se estivesse, você poderia se considerar um sortudo: sou sujeito bom, digno, amigável e gosto de escrever e tomar café em pés sujos do centro do Rio. E agora você continua sendo o cara que amo, com a diferença de que já te vi: você é real, com aquele jeitão de boêmio libertino.

E o boêmio libertino que eu já havia percebido nas páginas d’Os paralelepípedos da Vila Mimosa reencontrei agora em algumas páginas do “Subversões”. Mas, mais que o boêmio libertino, encontrei também o nostálgico. Não aquele da “nostalgia desavisada”, mas o que faz da memória espaço de redenção e clareamento da vista. E te confesso que gostei mais do Subversões que d’Os paralelepípedos da Vila Mimosa. Não que o anterior não seja bom, ao contrário. Mas Subversões me pegou de um jeito diferente daquele. Talvez porque, agora, eu também tenha enveredado pela prosa narrativa, algo que nunca achei que faria. O meu “Diário dos vivos e outros escritos” está quase pronto, faltando apenas alguns arremates aqui e ali. E esses arremates têm sido necessários, porque é um universo novo para mim a prosa narrativa. Para você, ao contrário, parece ser sua verve desde que você começou a falar, antes mesmo de aprender a ler e escrever.

Você dividiu o livro em duas partes: “Breves histórias” e “Crônicas da selva”. Excelente essa sua escolha! Podemos ver os muitos Cosleis que você abriga. Eu, equivocadamente, disse antes, numa postagem no Facebook, que era um livro de contos. Não. É um livro de tudo. Na primeira parte reinam os contos, mas há também umas crônicas líricas de tirar o fôlego. Meu véi, uma prostituta que se chama Brisa e se confunde com a brisa vinda do mar de Copa foi umas das imagens mais poéticas que já li. A “Anhinhanha” então?! É de rir aos borbotões (e “rir aos borbotões” é coisa que caras da nossa idade conhecemos bem). Em “A sombra do imperador”, você brincou de escrever bem! Só um conhecedor desse Rio de Janeiro como você seria capaz de tal façanha. Aliás, você é o Rio de Janeiro! Suas veias e artérias devem seguir o mesmo traçado das ruas mapeadas do Rio. Em dois contos, no entanto, você abandona as entranhas cariocas e se aventura naquelas do sul do país. E mais uma vez brilha. “Cárcere” é um esplendor de narrativa! Quando a gente começa a ler, pensa logo em Kafka. Depois lembra de J. J. Veiga. Mas, ao terminar, a gente se diz: não, é só Coslei nos mostrando como escrever é arte das mais refinadas. O mesmo refinamento que vemos em “As estrelas de Imbé”.

Na segunda parte, temos o Coslei das crônicas ensaísticas, filosóficas e jornalísticas. E aí, véi, você se supera mais uma vez. Chorei lendo “Olhar urbano”. Mas não se empolgue! Isto talvez não tenho sido só mérito do seu belo e tocante texto. Ando chorando à toa há algumas semanas. Meu psiquiatra diz que isso vai passar com os remédios. Aliás, Coslei, queria te perguntar: você chora quando escreve um texto? Eu, muitas vezes, choro. Sei lá se isso é bom, se ajuda ou prejudica a escritura. Ainda bem que não usamos mais máquina de escrever: imagina a quantidade de páginas manchadas. Quer dizer, eu não uso mais; não sei você. Como disse antes, você é nostálgico... vai saber.

Você diz, numa das crônicas, que na infância não possuía muitos brinquedos, mas que tudo se transformava em brinquedo nas suas mãos. “Uma lata, uma caixa, um pedaço de isopor, calha de automóvel, imã, bonecos de palito de fósforo, chaveiros, todos assumiam almas que dialogavam nas fantasias e histórias criadas em cima do sofá da sala”. Viu? Acertei. Você já era um escritor antes mesmo de aprender a ler e escrever.

Há nessa segunda parte, entretanto, um azedume que vai se aprofundando. Um azedinho, muitas vezes, faz bem ao paladar, como nas balas de alcaçuz. Mas Coslei, meu véi, só tenha o cuidado para não pesar na mão. E te falo isso porque, já tendo declarado meu amor por você, me sinto no direito de fazê-lo. Quando você diz que precisou “de quase meio século para aceitar a diferença entre amigos da onça e amigos do peito”.... Porra! Demorou para cacete, hein, meu véi! Eu já havia aceitado bem antes. Mas, talvez como você, só agora me sinto livre para poder verbalizar isso: a idade traz essas prerrogativas. E Coslei, Coslei... chega aqui pertinho, meu véi! Rapaz, como você diz para a Janaína que ela estava mais bonita na foto do crachá? Eu ri para caralho, mas a Janaína teve toda razão em não ter te dado a oportunidade. Mas, quanto mais nos aprofundamos nas crônicas da segunda parte, mais seu azedume faz sentido. E isso, confesso, eu não gostaria de admitir. “Inércia” é uma porrada na boca do estômago: uma crônica para ser lida, ouvindo “Roda morta” do Sérgio Sampaio. Aliás, não só ela, mas quase todas as outras dessa segunda parte do livro.

Termino esta carta, amigo Coslei, dizendo que ainda aguardo nosso almoço. E não me venha de novo com esse papo de “sou um carretel”. Carretel a gente desenrola, meu amigo. E, se preciso for, a gente passa cerol nele e sai cortando tudo que nos atrapalha nas relações e afetividades. “Subversões” é muito, muito bom mesmo. Vou mostrá-lo a todos que conheço e que sei que apreciam uma boa leitura.

Fica bem, meu querido Coslei! Um abraço do seu agora irmão (como você recentemente me nomeou) e não poste mais fotos de chope gelado, por favor! Isso foi sacanagem.

Nos vemos em breve.

Edmilson Borret

Rio de Janeiro, 12 de julho de 2019.

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Captura de tela - Sihan Felix




Os aviões da Roma de Cuarón



Uma vida em preto e branco talvez seja preferível no fim das contas. Em preto e branco não se vê o amarelado do tempo (e do cigarro) sobre as coisas, os móveis. Essa transitoriedade, essa efemeridade das coisas, de tudo, são tão mais chocantes quando nos damos conta de que as maquiamos.

Hoje recebi a visita de um grande amigo. Ligou cedo, avisando que viria à tarde. Eu não limpava a casa há semanas. Corri para varrer a casa, passar pano com Veja no chão. Só então reparei na geladeira... que deveria ser branca. Meses enfurnado em casa, só observando a vida. E a geladeira amarelando. Veja resolveu. E se resolveu na geladeira, também resolveria nos quadros (muitos), nas miniaturas de carros na estante, nos bibelôs sobre a mesa de centro. O amigo chegou por volta das quinze horas. Tudo limpinho, maquiado.

Tomamos chá gelado com bolo, pães e queijo. E conversamos sobre a vida, sobre pessoas queridas (e também não queridas), sobre projetos e sobre um monte de outras coisas, como costumam conversar os amigos quando não se veem faz tempo. Tempo. Quando vimos já tinha passado, e era tempo de ele ir a outro compromisso. E lá passaria outro tempo. Fiquei aqui observando a geladeira branquinha como era antes. 

Que susto as geladeiras e seus amarelados podem nos dar!

Como os aviões que cruzam o céu.

Denunciam o tempo escoando. Ou eu passo a fumar menos, ou eu decido a não ser mais mero observador, espectador da minha vida. E isso é pessoal e grandioso. Películas em preto e branco não são a vida. Quando eu não tiver mais Veja, como será?

(Edmilson Borret - 10/02/2019)

sábado, 5 de janeiro de 2019


A estória de Tertuliano



Tertuliano era uma pessoa inteira. Para quem aperto de mão faltava algo, precisava abraçar. E abraçar com tapinhas nas costas. E ria. Ria muito. Ria do dentro para o fora e vice-versa: como que respirasse. O corpo arqueado se empertigava para, logo depois, arquear de novo, ondulando-se à sua risada. Tertuliano era a alegria da rua e do bairro. Havia de tudo um pouco nas mãos, nas rugas e nas estórias de Tertuliano. As mãos quase tudo fizeram para o sustento, não havia ofício que não conhecessem. As rugas davam conta dos muitos filhos, netos e bisnetos que a leveza dos anos carreou. E as estórias, que tinham por testemunhas as mãos e as rugas, emprestavam uma contrição quase de rosário a quem as ouvia, tamanha a atenção que crianças, moças, mulheres, rapazes e homens feitos lhes davam. O pouco que aprendera a ler e escrever agigantava-se quando ele contava suas estórias. O aedo que respirava riso e que ria respiração era capaz de encantar até os gravetos e as pedras da rua. Tinha o dom de contar coisas de quando o mundo ainda não existia com tanta elegância que quem o escutasse acabava por acreditar que o mundo talvez um dia não tivesse existido deveras. Dalva, todo orgulhosa, gostava de comentar:

- Meu velho sabe coisas que até Deus duvida.

E benzia a boca após o comentário, de medo que Deus ouvindo e, invejando a sapiência do marido, o amarasse em rochedo para que abutres lhe comessem as tripas de noite.

No dia em que Tertuliano morreu, era uma tarde dessas morosas. Como se o bairro, as casas, os bichos, os gravetos, as pedras da rua e até o ar decretassem um luto de horas para choramingar surdamente a ausência do riso respiração. As nuvens, vendo aquilo, resolveram ajudar a disfarçar lágrimas. Naquela noite, poucas horas após seu enterro, choveu. Choveu muito. Há quem jure, até hoje, que a chuvarada forte batendo nas vidraças lembrava o som ofegante de quem respirasse compassadamente... como se estivesse rindo. Há quem jure.

(Edmilson Borret – 31/10/2013, editado em 04/04/2014)