segunda-feira, 29 de outubro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

XI.

já passava das oito da noite. precisava voltar, os de casa já deveriam estar putos da vida me aguardando para jantar. mas um dos amigos da birosca me intimava a permanecer. tinha que ouvir o poema que acabara de escrever. rompemos nossa amizade aqui se você for antes de ouvi-lo. pedi mais uma pinga. era um poema ruim. como quase todos escritos em guardanapos. brindamos a ele e ao seu poema. dei a última talagada. agora vou. o amigo do poema meu deu abraço de quebrar costelas. você é um dos sujeitos que mais admiro nesta cidade. leve o poema, é seu. os outros me olharam em suspense. sorri para o amigo do poema, dei-lhe um beijo no rosto e coloquei o guardanapo no bolso. os outros respiraram aliviados. eu também. minhas costelas também. até em casa o caminho seria longo, as ruas desertas. ainda me virei em direção à vendinha do joaquim. as portas já estavam fechadas. por um instante pensei em ir até lá e esvaziar a bexiga bem na calçada da vendinha. mas há muito tempo eu já me dera conta de que há territórios que não se conquistam mais. muito menos se demarcam. mijei mesmo no primeiro poste que vi.

Para ler o restante, adquira o livro Diário dos vivos e outros escritos, publicado pela Editora Penalux, set. 2019, no site a seguir:

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sexta-feira, 19 de outubro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

X.

a voz da cantora dizia que o desconforto anda solto no mundo e o corte é profundo bem lá no fundo da sua alma. no exato momento em que creuza aparecia na porta do escritório para me trazer um café. não fecha nunca. perguntei o quê. o corte, ela respondeu. fiz um café fresco. deixou a xícara sobre a mesa. antes de se retirar, ainda na porta, disse que músicas assim a faziam pensar nos acasos da vida. os de casa não gostavam muito quando creuza se dedicava a conversas comigo. diziam que eu colocava ideias estranhas em sua cabeça. idiotas! nem se davam conta de que era o contrário. tio, vou à cidade fazer umas compras. quer vir junto? não. vamos! andar um pouco na cidade vai te fazer bem. e sempre podem acontecer coisas inesperadas. tentei antever o que de inesperado poderia acontecer numa cidade pequena que eu conhecia há mais de cinquenta anos. lembrei dos acasos da vida de que creuza falou. tá bom. vamos a pé? claro que não, tio. vamos na caminhonete, muita coisa pra trazer.

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domingo, 14 de outubro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

IX.

nas coisas em que a cabeça dói, o corpo entorta e os pés reclamam, o coração implícito está. e estando, explicita-se: vem à boca. assim acordei naquele dia: o coração na boca. toma uma sonrisal que melhora, tio! desde que abri os olhos naquela manhã, sentia um cheiro de passado. que ia ficando mais forte à medida que as horas passavam. refugiei-me no escritório em meio aos livros, mas nada de o cheiro passar. foi por volta das onze horas que o cheiro foi ficando mais forte. veio uma náusea. fui na área, peguei balde, enchi d’água, coloquei  creolina, peguei vassoura e esfregão. vai dar faxina, tio? tá quase na hora do almoço. esfreguei todos os cômodos, chão e paredes. quase uma hora sem negligenciar sequer um vão da casa. ao final, caí exausto na poltrona da sala. de nada adiantou. o cheiro parecia vir de dentro de mim, de tão forte que estava. estava a ponto de desmaiar, quando a campainha tocou. tio, tem um homem lá no portão dizendo que é seu amigo, veio te ver. e o cheiro rompeu todas as barreiras: o vento do início da tarde arrastava-o do portão, passando por todo o quintal, atravessando a sala e perfurando a memória das minhas narinas. os únicos amigos que tenho são os da birosca e vocês todos os conhecem, foi o que consegui balbuciar diante da iminência do desmaio. fiz menção de me levantar da poltrona e ir me trancar no quarto. não queria receber ninguém. mas as pernas não foram, a sala escureceu, no exato momento em que ele já se encontrava na porta de entrada. não cumprimenta um velho amigo?

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diário dos vivos [fragmento]

VIII.

era uma dor nas costas, nas pernas, na boca do estômago e um cansaço. espinhela caída, diagnosticaram os de casa. manda chamar dona mocinha. dona mocinha era a pessoa mis velha da cidade, devia beirar já os noventa e cinco anos. já fora parteira tempos atrás, mas com a chegada do progresso, médicos e posto de saúde, relegaram-na à mera função de benzedeira. o padre torcia o nariz pra ela, os crentes da igreja do pastor também. mas dona mocinha e sua figura curvada ainda exercia forte influência entre os moradores mais antigos. dona mocinha tinha uma família vasta espalhada pela cidade: vários irmãos e irmãs, muitos sobrinhos e sobrinhos-netos. nem um único filho de que se tenha notícia. dona mocinha jurava virgindade beijando o crucifixo que trazia ao peito, cada vez que duvidavam de seus noventa e cinco anos de castidade. foi uma promessa, dizia. a forma de cumprir a promessa, no entanto, era bem singular. ela decidira, há anos, não só manter o cabaço intacto, mas que, a partir daquele dia, iria de casa em casa da cidade, com uma panelinha em mãos, pedir canjica a cada quinta-feira santa.

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diário dos vivos [fragmento]

VII.

tio, por que o senhor não descasca a maçã? e por que eu deveria descascá-la? por causa dos agrotóxicos, tio. já ouviu falar dos agrotóxicos? sim. e, além do mais, o senhor não descasca a laranja pra comer? hum. não descasca a banana? hum. e a mexerica, e a manga, e o cajá? pela sua lógica, eu também deveria descascar o caqui e a uva. não, é só cuspir a casca fora. muito trabalho, prefiro comê-los com a casca. e isso vale para a maçã também. o senhor que sabe, tio. não tá mais aqui quem falou. só que eu não ia deixar um dos de casa sair assim de uma conversa sem um pequeno sermão moralizante, após o mesmo ter quebrado os limites do silêncio que estabeleci quando optei pelos muxoxos e resmungos seguidos do dar de ombros. a laranja, por exemplo. o quem tem a laranja, tio? algumas frutas e legumes são como as pessoas. uma laranja pode ter uma casca bonita, brilhante, lustrosa, sem nenhuma mácula. mas quando a gente a descasca, pode ser que esteja seca. ou pode ser que esteja suculenta e convidativa, mas azeda quando se leva à boca. assim também são as pessoas. e como se descasca uma pessoa, tio? não há faca melhor para isso que o tempo.

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diário dos vivos [fragmento]

VI.

não há muita coisa a fazer. a doença do tio de vocês evolui na surdina, e ela pode miná-lo aos poucos. ele tem pouco tempo, doutor? ninguém sabe. o que se sabe é que ele não pode viver sozinho, tem que ter sempre alguém pra cuidar dele. por causa dessas palavras idiotas do médico, os de casa resolveram que a partir daquele momento não seriam mais visitas esporádicas no natal e nos meus aniversários: seriam os de casa. e há quatorze anos se mudaram de mala e cuia para cá. a casa é grande, tio. tem muitos quartos, vamos ficar bem. e é bom que a gente esteja aqui para cuidar sempre do senhor, né? eu não achava isso nada bom. mas se eu expusesse essa minha opinião, com certeza eles diriam se tratar de sintomas da doença que já se prenunciavam. consenti. foi precisamente nessa época que fiz a opção por dar de ombros e a responder a quase tudo com muxoxos. não sem antes, porém, fazer aquele que talvez tenha sido meu último discurso para os de casa e que se resumiu a duas frases. se querem ficar, fiquem. mas que fiquem também longe dos meus livros e dos meus discos. consentiram.

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diário dos vivos [fragmento]

V.

ivânio era homem de muitas palavras. todos diziam que era o oposto de mim. no entanto era meu amigo e eu dele. na verdade eu não saberia dizer com certeza se era coisa de amizade ou simplesmente porque nos conhecíamos há muito tempo: um se acostumou às estranhices do outro. não que eu não o achasse um velho doido, e não que ele também não me achasse. mas sentados na mesa da birosca, diante do copo de pinga, ambos considerávamos de forma igual a imensa bobagem que era a vida. 

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diário dos vivos [fragmento]

IV.

não havia viva alma em casa quando acordei. procurei em todos os cômodos, no quintal, no pomar – ninguém. não havia louça do café da manhã. revistei guarda-roupas, nada foi levado. o carro continuava lá parado na porta de casa. botei uma roupa e saí. perguntava aos vizinhos se tinham visto os de casa sair. ninguém da rua os viu, nem as fofoqueiras que acordavam com o canto dos galos. fui a pé até a cidade. perguntei a todos. ninguém os viu. informei ao delegado o sumiço dos de casa. não que eu me importasse com eles, mas por ser assim que parecia ter que ser: fiz minha parte. no caminho de volta, perguntei a mais pessoas. cada não os vi que obtinha como resposta ia me deixando mais leve. foram abduzidos, com certeza foram. no ano passado saiu no jornal sobre uma família inteira que tinha sido abduzida numa cidade lá no méxico. nunca mais apareceram. uma família inteira! os de casa devem ter convencido os extraterrestres de que eu seria um peso morto na viagem: isso era a cara deles.

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diário dos vivos [fragmento]

III.

naquela manhã, creuza não apareceu. não mandou um dos seus moleques nem ninguém outro para explicar o motivo. simplesmente não apareceu para cozinhar. os de casa, atarantados como de costume, tentavam uma solução. fazemos uma macarronada e pronto, qualquer um sabe fazer macarrão. amanhã creuza explica por que não veio hoje. os de casa sempre fizeram valer a verdade anatômica de o estômago ser centímetros maior que o coração. pareciam nem lembrar da artrose de creuza.  o sabor e o tempero que lhe brotavam dos dedos eram como a poesia: nasciam da dor. mas quem se importa com poesia, com dor ou sabor? não se preocupem, eu faço o almoço hoje. não posso comer massa, o médico cortou da minha dieta. esqueceram? tio, volta pro seu jornal e deixa isso com a gente. já disse, eu faço o almoço. se entreolharam e deram de ombros. o velho tá louco mesmo, deixa ele. fui ao quintal e peguei lenha do monte para alimentar o fogão. vai fazer o quê, tio? comida. não está vendo?

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diário dos vivos [fragmento]

II.

o homem no rádio falou que o mundo acabava essa madrugada. seria agora ou nunca mais. os de casa estavam em polvorosa, como baratas. vesti uma roupa e saí de fininho. quase no portão, ouço a voz desesperada: tio, vai aonde? vou na vendinha do joaquim, não conte a ninguém que me viu sair. mas o mundo vai acabar, tio. deixa de doideira e volta pra casa. dei de ombros. precisava falar com ela. seria agora ou nunca mais. na estrada, sinais de que o mundo de fato ia acabar: um sujeito quase surrava seu cavalo para que este o tirasse dali o mais rápido possível. pobre cavalo! apanhava sem saber que talvez seria a última surra que tomava. virando a esquina, uma moça recolhia a roupa do varal. acenei pra ela. ainda tá molhada, mas a gente seca a ferro, vai saber. sorri e acenei de novo pra ela, que desta vez retribuiu o aceno. mais dez minutos de estrada, estava na vendinha. precisava falar com ela. seria agora ou nunca mais.

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diário dos vivos [fragmento]

I.

a primeira vez que morri foi um fiasco. era pra ser morte de respeito, com obituário e pompa, com velório, viúvas, carpideiras e credores. sempre almejei alguma seriedade na minha vida – e por isso resolvi que morreria. decidi de véspera: amanhã morro. dormi um sono solene, daqueles em que a gente vai antevendo honrarias e comoção. no dia seguinte nem café da manhã tomei, só um copo de leite gelado: queria estar leve. os de casa estranharam de início, mas logo depois deram de ombros. se o velho quer fazer regime, deixa ele. olharam na folhinha para ver se era segunda-feira. não era. ano novo tinha passado já faz tempo. deixa ele. fui ao quintal, acendi um cigarro e sentei embaixo da mangueira. seria ali, estava decidido...

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