sexta-feira, 21 de dezembro de 2018






COMO SE OUVISSE MÚSICA [fragmento]


1.
Não sei se ele olhou para o relógio de pulso, se ele tinha um relógio no pulso, se ele teve pulso, ou se consultou no visor do celular ou na tela do computador a hora exata em que decidiu saltar. Porque se o tivesse feito, veria que eram dezessete horas e quarenta minutos e que a essa hora não se deve saltar de um prédio. Às dezessete horas e quarenta minutos, a senhora do sexto andar já terminou de tomar seu chá e está arrumando o lacinho do seu poodle, ou talvez um shih tzu, para a caminhada pelos arredores e encontrará, ao descer pelo elevador, a vizinha do oitavo andar que lhe contará sobre o sujeito que se atirou do décimo primeiro andar cujo corpo se encontra numa poça de sangue na calçada em frente e esta senhora decidirá não mais passear com seu poodle, ou talvez com seu shih tzu, amaldiçoando o acontecimento que a impediu de mostrar para toda a vizinhança e para o dono da banca de jornal e para o segurança das lojas americanas o lacinho recém comprado no petshop onde ontem ela levou seu shih tzu, ou talvez seu poodle, para tomar banho. Ou talvez, e isso se explica pela necessidade vital das pessoas de aproveitarem momentos de grande comoção para ostentar opiniões e aquisições, ela decida ainda assim manter seus planos, não obstante a vizinha do oitavo andar a tivesse prevenido da cena chocante que a esperava na calçada, e levar o poodle, shih tzu talvez, para o passeio que agora mais seria um deleite mórbido da senhora do que um alívio do cãozinho pela mijada ou cagada que há tanto esperava. Às dezessete horas e quarenta minutos, a mãe que largou do trabalho como gerente de uma loja de uma grande rede de moda prêt-à-porter às dezessete horas num shopping do outro lado da cidade foi buscar os filhos na escola da rua de cima próxima ao prédio e os traz arrastando suas mochilas de rodinha pelas calçadas esburacadas de pedras portuguesas que no atrito com as rodinhas das mochilas produzem o ruído incômodo das calçadas no fim de tarde nas áreas de grande concentração populacional.


Para ler o restante, adquira o livro Diário dos vivos e outros escritos, publicado pela Editora Penalux, set. 2019, no site a seguir:

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segunda-feira, 17 de dezembro de 2018


Litografias e Gravuras Bruscamente Tolhidas pela Inquisição


era um istmo
finíssimo
e em volta
o mar

era um átimo
inóspito
nas revoltas
de amar

era um étimo
helênico
que volta
a estremar



era um óbito

(Edmilson Borret – 17/12/2018)

sábado, 15 de dezembro de 2018

Freya suffering when her husband suddenly disappeared. This became a famous love story in Norse mythology





A encantadora de gatos do Campo de Santana [fragmento]




Ele odiava mofo e teias, eram o tipo de coisa que lhe dava engulhos. E ele sabia que a própria palavra “engulhos” – até mais do que sentir engulhos – era pura frescura, mas a verdade é que ele era assim. Ou assim decidiu que seria depois de muito se aventurar em náuseas silenciosas. Mas mesmo odiando mofo e teias, tinha que alcançar aquele exemplar raro das Canções do António Botto lá atrás dos manuais de bricolagem, dos tratados de Tordesilhas, das enciclopédias de capa dura – atrás de tudo, atrás inclusive do mofo e das teias. Fechou os olhos, prendeu a respiração, mergulhou por baixo das bancadas de livros mal equilibrados e rastejou. Esticou o braço e foi no tato. Pimba! Pegou. Rastejou de volta, abriu os olhos e soltou o ar. Procurava esse livro há tempos, jamais conseguira encontrá-lo novinho numa livraria novinha sem mofo e teias. Decididamente não entendia os que diziam haver algum charme nesses sebos do centro do Rio.
- Quanto é?
- Cem reais.
- Mas eu quase morri sufocado, arrisquei minha vida para achá-lo jogado lá embaixo das estantes. Vai ver você nem lembrava mais que ele existia.
- Ainda bem que o senhor me fez o favor de lembrar... Cem reais!
Enquanto o sovina embrulhava o livro naquele papel chinfrim rosa claro, abriu a carteira para pegar o dinheiro e lembrou que ainda precisava passar no mercado, comprar ração para o gato e uma coisinha qualquer para a noite. Um desses pratos semiprontos e uma verdura para uma salada já estariam de bom tamanho. Tudo está de bom tamanho quando se aprende a adaptar-se à solidão. Nela nada é de mais ou de menos, tudo parece moldar-se com precisão aos espaços vazios: na falta absoluta, ninguém suspeita dos vãos. Parou à saída do sebo e caçou os óculos escuros na bolsa. Colocou-os e sentiu-se bem. E protegido. Vamos lá, cidade! Olhar para o que quer que fosse, para quem quer que fosse, sem que seus olhos o denunciassem, dava uma despudorada sensação de segurança. Atravessou a ruazinha de paralelepípedos e ganhou a calçada oposta.

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segunda-feira, 10 de dezembro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

XXII. Epílogo

peguei o café e me dirigi ao escritório. precisava arrumar aquela bagunça também. ao passar pela sala, da janela a vi no quintal. vem aqui fora! fazer o quê? conversar, oras. já disse, não tenho tempo para você. continuei em direção ao escritório. demorei quase meio dia para colocar os livros e discos nas estantes de volta. e mais algumas horas arrumando os quadros, os retratos de família sobre a escrivaninha, os papéis e cartas nas gavetas. perdi mais tempo nessa última tarefa. as poucas cartas que ele escreveu eram abertas e relidas à medida que eu as arrumava. precisava comer. creuza não viera e os de casa tinham desaparecido. passando pela sala para voltar à cozinha, batidas na porta. ela não tinha ido embora ou voltou. posso entrar? fique aí mesmo onde está. vai me fazer esperar mais quanto tempo? pois não me espere: vá! sabe que não posso. então fique aí!

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sexta-feira, 7 de dezembro de 2018



diário dos vivos [fragmento]

XXI.

e a terra tremeu. acordei no susto. não era sonho, a terra estava tremendo forte. os quadros caíam das paredes. meus objetos eram lançados da prateleira. do meu quarto, ouvia os gritos de desespero dos de casa. era preciso vestir a calça: não se enfrenta um tremer da terra pelado da cintura pra baixo. os meus pés não achavam as pernas da calça. a terra resolvera beber mais do que eu. e ficamos eu e ela nesse jogo do não me empurra até que finalmente consegui me vestir. na sala, os de casa seguravam-se nos móveis. o que vamos fazer, tio? vai tudo desmoronar. calma! essa casa resiste: meu pai a construiu desde os alicerces com as próprias mãos. dez minutos depois, parou.

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segunda-feira, 3 de dezembro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

XX.

é de estranhar que ainda haja vida por aqui. logo aqui onde ela é tão menosprezada. a vida é vingativa, sabe? se você não a paparica, ela te dá as costas, te abandona. é como deus. tem algo de ontologicamente infantil nisso: a vida, assim como deus, não sabe ainda lidar com perdas. mas eles vieram, os de casa. e por isso os chamo os de casa. porque eles pertencem a essa casa. essa casa que meu pai construiu com as próprias mãos desde o alicerce. essa casa era cheia de vida. essa história de fazer pouco caso da vida começou sei lá quando. acho que quando soube do abismo. se não precisamente ali, talvez mais para trás, quando já o pressentia. o verbo abismar quer dizer muita coisa. meu pai dizia que quem diz muita coisa pode às vezes não estar dizendo nada. não é o caso do verbo abismar: ele diz dizendo. daí que ele pode significar algo caindo ou jogado no abismo, mas pode também querer dizer o estado de maravilhamento diante de algo. pode significar o ato de se devotar a algo, mas também o ato de se recolher, de se ensimesmar. maravilhar-se, devotar-se, recolher-se, ensimesmar-se. é como abismar-se. eu me abismo. tu te abismas. nós nos abismamos. um verbo pronominal. que diz também de uma reflexividade. e eu sempre vi as ações reflexivas como algo que se dobra sobre quem as pratica. como uma manta, uma cobertura, descrevendo um arco. abismar-se é dobrar o abismo sobre si.

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sábado, 1 de dezembro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

XIX.

bingo! mais uma! assim você vai acabar com todas as moscas do meu bar, homem! quando estava sozinho na birosca, esse era um dos meus passatempos favoritos. sossega! essa tua birosca tem tanta mosca que não haveria copos no mundo para capturá-las. foi um treinamento de anos, na verdade. saber a hora exata de emborcar o copo. há muita física e matemática envolvidas nisso. um pouco de aerodinâmica e de esperteza também: tem que deixar uns respingos de pinga cair sobre a mesa. não sei se moscas sentem o efeito do álcool, mas desde que comecei a me esmerar na captura delas, essa tem sido parte da minha tática. aproveitar o momento em que a mosca, estaria tonta?, abaixa a guarda. talvez esteja pensando na vida, na carniça em que se refastelou mais cedo. seja o que for, pensamento ou tontura, essa é a hora. e então tem-se a mosca presa sob um domo. ela não se debate como os outros bichos quando cativos. faz, no máximo, voar de uma parede a outra do copo nos primeiros minutos. depois, dá-se conta de que está presa e relaxa. talvez, em sua experiência de mosca, ela saiba que uma hora ou outra o copo será levantado. ou alguma outra mosca já lhe tenha contado que, nesta birosca, um velho sádico as prenda sob um copo por alguns instantes. vai saber o que as moscas andam conversando.

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quinta-feira, 29 de novembro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

XVIII.

meu pai odiava quando o disco de rock era colocado. isso não é música, é barulho. aposto que é aquele seu amigo que anda te influenciando. lembro do dia em que ele veio aqui em casa com o disco do ramones debaixo do braço. você precisa ouvir isso. a música dizia: eu era muito mais velho quando jovem. nunca entendi. nem ele. olhávamos para o meu pai e tentávamos entender se ele, de alguma forma, poderia se sentir mais jovem que nós. tínhamos um mundo: meu pai, uma casa que construíra com as próprias mãos e uma família que amava. eu e ele navegámos contra a corrente no bateau ivre do rimbaud. meu pai agarrava-se à tranquilidade do nautilus do jules verne. tudo isso eu ouvia dele e admirava o quanto ele entendia da vida e dos homens mais do que eu. ano que vem você entra na faculdade, precisa ler esses caras. foi o que ele me ensinou entre outras coisas, como a fumar e beber. naquele verão eu iria pra capital. fazia seis meses já desde que ele se fora. desde que joaquim e seus amigos lhe deram aquela coça.

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segunda-feira, 26 de novembro de 2018



diário dos vivos [fragmento]

XVII.

ainda acho que você trouxe pouca pinga, azevedo. você acha duas garrafas pouco? essa pescaria nem vai durar o dia inteiro, final da tarde a gente já está de volta. você sozinho toma uma garrafa antes do meio-dia, azevedo. quando os de casa me acordaram cedo me avisando que os amigos da birosca me aguardavam no portão, eu amaldiçoei mil vezes a hora em que concordei em ir pescar com eles. nem vai tomar café direito, tio? só um café puro tá bom, eles estão levando pão e mortadela. volta pro almoço? não me esperem. eu já adiantava uns dez passos deles, enquanto ficavam para trás discutindo sobre a quantidade de pinga. ou vocês três aceleram ou os peixes já estarão tirando a soneca da tarde quando chegarmos ao rio. calma, homem! estamos discutindo uma questão muito séria aqui. deixem o pobre do azevedo em paz! eu trouxe mais uma garrafa de pinga. ah, agora é pobre do azevedo, né? só porque ele te escreveu um poema com direito a beijinho no rosto?

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sábado, 24 de novembro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

XVI.

tio, tá na hora do seu remédio. eu sei. e talvez não seja boa ideia ir na birosca hoje encontrar seus amigos. deu chuva forte pra hoje. ainda está para nascer quem vai me dizer que não devo sair de casa por algum outro motivo que não seja a minha vontade. medo de chuva? rhun! conheço as águas. final da tarde, como de hábito, rumei para a birosca. nas casas à beira da estradinha que ia até a cidade, roupas eram tiradas do varal. já viu o céu pros lados da serra? vem chuva forte aí. ela não vem antes da noite. ainda assim eu deixaria pra ir na cidade outro dia. volto antes que ela caia, não se preocupe. todos nas redondezas tinham muito medo da chuva. e isso há muito tempo. e você não, homem? conheço as águas. o dono da birosca ria dessa minha resposta toda vez que ele me fazia a mesma pergunta.

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terça-feira, 20 de novembro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

XV.

de que serve ter o mapa, se o fim está traçado? a descoberta da doença não trouxe muitas certezas, além da óbvia. trouxe porém os de casa, que me rodeiam sem aqui estarem, pois não os vejo. ou eles que não me veem. há um muro que sempre ergui entre mim e os que se preocupam comigo. e dele sempre me orgulhei. e por ele tenho empenhado meus afastamentos. tenho construído enredos de uma morte. morro quando, por medo, deixo partir quem amo. morro quando, por inabilidade, não consigo dizer o meu amor a quem amo. morro quando confundo essas duas mortes e não sei qual delas primeiro me matou. de qualquer forma, meu fim está traçado. e não sei se dele me orgulho agora. por isso a birosca e os poucos amigos que lá encontro. no fundo do copo, inventamos alguma vida.

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sábado, 17 de novembro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

XIV.

tio, alguns amigos seus da birosca tão aí. querem falar contigo, parece urgente. os de casa sempre se referiam a eles como os “amigos da birosca”, como se eu só os encontrasse na birosca. acho que, no fundo, se indagavam como eu poderia ter amigos. mais: como se firmava essa amizade em termos de conversa. com os de casa eu pouco ou quase nada falava. devem ficar na birosca só tomando cachaça e botando olho em mulher alheia, conversa nem devem ter. na sala encontrei três dos “amigos da birosca” apreensivos. precisamos salvar o azevedo, tá preso. e o que ele fez para ser preso? nada de mais, deu um tiro no dono do circo que está na cidade. mas foi de raspão, nem gastou muita gaze e esparadrapo. mas por que diabos ele fez isso? 

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quinta-feira, 15 de novembro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

XIII.

no início me incomodava muito aquela aproximação. a ponto de eu inventar desculpas para fugir dele. seu amigo tá lá no portão. diz que estou ocupado, estudando, pai. não adiantava. ele irrompia casa adentro, sorria o sorriso cínico de sempre que encantara minha mãe, dava abraços com tapinhas nas costas de meu pai. minha mãe o adorava. meu pai já havia percebido o cinismo em seu olhar e talvez o adorasse também justamente por isso. do escritório, eu ouvia o som de sua voz na sala e me encolhia por dentro. oi, sumido! sua figura alta, na porta do escritório, esperava apenas que eu assentisse sua vinda com um outro oi. vinha até onde eu estava e me dava um beijo na testa. não faça isso, meus pais estão em casa.

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quinta-feira, 8 de novembro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

XII.

porque em certo momento da vida é só isso que teremos: as lembranças e os remédios. as primeiras às vezes nem, porque já estarão destruídas por elas mesmas. pois eu ainda me lembro. ainda sinto o gosto e o cheiro da água. quando ela veio, veio destruindo tudo. isso foi no tempo em que a casa ainda tinha vida. no tempo em que ainda saíam da minha boca, cotidianamente, palavras como pai, mãe e vó. a cabeça d’água na parte alta do rio foi a mais violenta que já se vira. água não tem respeito por portão. vai entrando casa adentro sem pedir licença, nos pega desprevenidos, às vezes sem nada em casa para oferecer. mas ela não faz cerimônia, pega o pouco que tem e leva.

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segunda-feira, 29 de outubro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

XI.

já passava das oito da noite. precisava voltar, os de casa já deveriam estar putos da vida me aguardando para jantar. mas um dos amigos da birosca me intimava a permanecer. tinha que ouvir o poema que acabara de escrever. rompemos nossa amizade aqui se você for antes de ouvi-lo. pedi mais uma pinga. era um poema ruim. como quase todos escritos em guardanapos. brindamos a ele e ao seu poema. dei a última talagada. agora vou. o amigo do poema meu deu abraço de quebrar costelas. você é um dos sujeitos que mais admiro nesta cidade. leve o poema, é seu. os outros me olharam em suspense. sorri para o amigo do poema, dei-lhe um beijo no rosto e coloquei o guardanapo no bolso. os outros respiraram aliviados. eu também. minhas costelas também. até em casa o caminho seria longo, as ruas desertas. ainda me virei em direção à vendinha do joaquim. as portas já estavam fechadas. por um instante pensei em ir até lá e esvaziar a bexiga bem na calçada da vendinha. mas há muito tempo eu já me dera conta de que há territórios que não se conquistam mais. muito menos se demarcam. mijei mesmo no primeiro poste que vi.

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sexta-feira, 19 de outubro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

X.

a voz da cantora dizia que o desconforto anda solto no mundo e o corte é profundo bem lá no fundo da sua alma. no exato momento em que creuza aparecia na porta do escritório para me trazer um café. não fecha nunca. perguntei o quê. o corte, ela respondeu. fiz um café fresco. deixou a xícara sobre a mesa. antes de se retirar, ainda na porta, disse que músicas assim a faziam pensar nos acasos da vida. os de casa não gostavam muito quando creuza se dedicava a conversas comigo. diziam que eu colocava ideias estranhas em sua cabeça. idiotas! nem se davam conta de que era o contrário. tio, vou à cidade fazer umas compras. quer vir junto? não. vamos! andar um pouco na cidade vai te fazer bem. e sempre podem acontecer coisas inesperadas. tentei antever o que de inesperado poderia acontecer numa cidade pequena que eu conhecia há mais de cinquenta anos. lembrei dos acasos da vida de que creuza falou. tá bom. vamos a pé? claro que não, tio. vamos na caminhonete, muita coisa pra trazer.

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domingo, 14 de outubro de 2018




diário dos vivos [fragmento]

IX.

nas coisas em que a cabeça dói, o corpo entorta e os pés reclamam, o coração implícito está. e estando, explicita-se: vem à boca. assim acordei naquele dia: o coração na boca. toma uma sonrisal que melhora, tio! desde que abri os olhos naquela manhã, sentia um cheiro de passado. que ia ficando mais forte à medida que as horas passavam. refugiei-me no escritório em meio aos livros, mas nada de o cheiro passar. foi por volta das onze horas que o cheiro foi ficando mais forte. veio uma náusea. fui na área, peguei balde, enchi d’água, coloquei  creolina, peguei vassoura e esfregão. vai dar faxina, tio? tá quase na hora do almoço. esfreguei todos os cômodos, chão e paredes. quase uma hora sem negligenciar sequer um vão da casa. ao final, caí exausto na poltrona da sala. de nada adiantou. o cheiro parecia vir de dentro de mim, de tão forte que estava. estava a ponto de desmaiar, quando a campainha tocou. tio, tem um homem lá no portão dizendo que é seu amigo, veio te ver. e o cheiro rompeu todas as barreiras: o vento do início da tarde arrastava-o do portão, passando por todo o quintal, atravessando a sala e perfurando a memória das minhas narinas. os únicos amigos que tenho são os da birosca e vocês todos os conhecem, foi o que consegui balbuciar diante da iminência do desmaio. fiz menção de me levantar da poltrona e ir me trancar no quarto. não queria receber ninguém. mas as pernas não foram, a sala escureceu, no exato momento em que ele já se encontrava na porta de entrada. não cumprimenta um velho amigo?

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diário dos vivos [fragmento]

VIII.

era uma dor nas costas, nas pernas, na boca do estômago e um cansaço. espinhela caída, diagnosticaram os de casa. manda chamar dona mocinha. dona mocinha era a pessoa mis velha da cidade, devia beirar já os noventa e cinco anos. já fora parteira tempos atrás, mas com a chegada do progresso, médicos e posto de saúde, relegaram-na à mera função de benzedeira. o padre torcia o nariz pra ela, os crentes da igreja do pastor também. mas dona mocinha e sua figura curvada ainda exercia forte influência entre os moradores mais antigos. dona mocinha tinha uma família vasta espalhada pela cidade: vários irmãos e irmãs, muitos sobrinhos e sobrinhos-netos. nem um único filho de que se tenha notícia. dona mocinha jurava virgindade beijando o crucifixo que trazia ao peito, cada vez que duvidavam de seus noventa e cinco anos de castidade. foi uma promessa, dizia. a forma de cumprir a promessa, no entanto, era bem singular. ela decidira, há anos, não só manter o cabaço intacto, mas que, a partir daquele dia, iria de casa em casa da cidade, com uma panelinha em mãos, pedir canjica a cada quinta-feira santa.

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diário dos vivos [fragmento]

VII.

tio, por que o senhor não descasca a maçã? e por que eu deveria descascá-la? por causa dos agrotóxicos, tio. já ouviu falar dos agrotóxicos? sim. e, além do mais, o senhor não descasca a laranja pra comer? hum. não descasca a banana? hum. e a mexerica, e a manga, e o cajá? pela sua lógica, eu também deveria descascar o caqui e a uva. não, é só cuspir a casca fora. muito trabalho, prefiro comê-los com a casca. e isso vale para a maçã também. o senhor que sabe, tio. não tá mais aqui quem falou. só que eu não ia deixar um dos de casa sair assim de uma conversa sem um pequeno sermão moralizante, após o mesmo ter quebrado os limites do silêncio que estabeleci quando optei pelos muxoxos e resmungos seguidos do dar de ombros. a laranja, por exemplo. o quem tem a laranja, tio? algumas frutas e legumes são como as pessoas. uma laranja pode ter uma casca bonita, brilhante, lustrosa, sem nenhuma mácula. mas quando a gente a descasca, pode ser que esteja seca. ou pode ser que esteja suculenta e convidativa, mas azeda quando se leva à boca. assim também são as pessoas. e como se descasca uma pessoa, tio? não há faca melhor para isso que o tempo.

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VI.

não há muita coisa a fazer. a doença do tio de vocês evolui na surdina, e ela pode miná-lo aos poucos. ele tem pouco tempo, doutor? ninguém sabe. o que se sabe é que ele não pode viver sozinho, tem que ter sempre alguém pra cuidar dele. por causa dessas palavras idiotas do médico, os de casa resolveram que a partir daquele momento não seriam mais visitas esporádicas no natal e nos meus aniversários: seriam os de casa. e há quatorze anos se mudaram de mala e cuia para cá. a casa é grande, tio. tem muitos quartos, vamos ficar bem. e é bom que a gente esteja aqui para cuidar sempre do senhor, né? eu não achava isso nada bom. mas se eu expusesse essa minha opinião, com certeza eles diriam se tratar de sintomas da doença que já se prenunciavam. consenti. foi precisamente nessa época que fiz a opção por dar de ombros e a responder a quase tudo com muxoxos. não sem antes, porém, fazer aquele que talvez tenha sido meu último discurso para os de casa e que se resumiu a duas frases. se querem ficar, fiquem. mas que fiquem também longe dos meus livros e dos meus discos. consentiram.

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V.

ivânio era homem de muitas palavras. todos diziam que era o oposto de mim. no entanto era meu amigo e eu dele. na verdade eu não saberia dizer com certeza se era coisa de amizade ou simplesmente porque nos conhecíamos há muito tempo: um se acostumou às estranhices do outro. não que eu não o achasse um velho doido, e não que ele também não me achasse. mas sentados na mesa da birosca, diante do copo de pinga, ambos considerávamos de forma igual a imensa bobagem que era a vida. 

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diário dos vivos [fragmento]

IV.

não havia viva alma em casa quando acordei. procurei em todos os cômodos, no quintal, no pomar – ninguém. não havia louça do café da manhã. revistei guarda-roupas, nada foi levado. o carro continuava lá parado na porta de casa. botei uma roupa e saí. perguntava aos vizinhos se tinham visto os de casa sair. ninguém da rua os viu, nem as fofoqueiras que acordavam com o canto dos galos. fui a pé até a cidade. perguntei a todos. ninguém os viu. informei ao delegado o sumiço dos de casa. não que eu me importasse com eles, mas por ser assim que parecia ter que ser: fiz minha parte. no caminho de volta, perguntei a mais pessoas. cada não os vi que obtinha como resposta ia me deixando mais leve. foram abduzidos, com certeza foram. no ano passado saiu no jornal sobre uma família inteira que tinha sido abduzida numa cidade lá no méxico. nunca mais apareceram. uma família inteira! os de casa devem ter convencido os extraterrestres de que eu seria um peso morto na viagem: isso era a cara deles.

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diário dos vivos [fragmento]

III.

naquela manhã, creuza não apareceu. não mandou um dos seus moleques nem ninguém outro para explicar o motivo. simplesmente não apareceu para cozinhar. os de casa, atarantados como de costume, tentavam uma solução. fazemos uma macarronada e pronto, qualquer um sabe fazer macarrão. amanhã creuza explica por que não veio hoje. os de casa sempre fizeram valer a verdade anatômica de o estômago ser centímetros maior que o coração. pareciam nem lembrar da artrose de creuza.  o sabor e o tempero que lhe brotavam dos dedos eram como a poesia: nasciam da dor. mas quem se importa com poesia, com dor ou sabor? não se preocupem, eu faço o almoço hoje. não posso comer massa, o médico cortou da minha dieta. esqueceram? tio, volta pro seu jornal e deixa isso com a gente. já disse, eu faço o almoço. se entreolharam e deram de ombros. o velho tá louco mesmo, deixa ele. fui ao quintal e peguei lenha do monte para alimentar o fogão. vai fazer o quê, tio? comida. não está vendo?

Para ler o restante, adquira o livro Diário dos vivos e outros escritos, publicado pela Editora Penalux, set. 2019, no site a seguir:

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diário dos vivos [fragmento]

II.

o homem no rádio falou que o mundo acabava essa madrugada. seria agora ou nunca mais. os de casa estavam em polvorosa, como baratas. vesti uma roupa e saí de fininho. quase no portão, ouço a voz desesperada: tio, vai aonde? vou na vendinha do joaquim, não conte a ninguém que me viu sair. mas o mundo vai acabar, tio. deixa de doideira e volta pra casa. dei de ombros. precisava falar com ela. seria agora ou nunca mais. na estrada, sinais de que o mundo de fato ia acabar: um sujeito quase surrava seu cavalo para que este o tirasse dali o mais rápido possível. pobre cavalo! apanhava sem saber que talvez seria a última surra que tomava. virando a esquina, uma moça recolhia a roupa do varal. acenei pra ela. ainda tá molhada, mas a gente seca a ferro, vai saber. sorri e acenei de novo pra ela, que desta vez retribuiu o aceno. mais dez minutos de estrada, estava na vendinha. precisava falar com ela. seria agora ou nunca mais.

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diário dos vivos [fragmento]

I.

a primeira vez que morri foi um fiasco. era pra ser morte de respeito, com obituário e pompa, com velório, viúvas, carpideiras e credores. sempre almejei alguma seriedade na minha vida – e por isso resolvi que morreria. decidi de véspera: amanhã morro. dormi um sono solene, daqueles em que a gente vai antevendo honrarias e comoção. no dia seguinte nem café da manhã tomei, só um copo de leite gelado: queria estar leve. os de casa estranharam de início, mas logo depois deram de ombros. se o velho quer fazer regime, deixa ele. olharam na folhinha para ver se era segunda-feira. não era. ano novo tinha passado já faz tempo. deixa ele. fui ao quintal, acendi um cigarro e sentei embaixo da mangueira. seria ali, estava decidido...

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