sábado, 15 de dezembro de 2018

Freya suffering when her husband suddenly disappeared. This became a famous love story in Norse mythology





A encantadora de gatos do Campo de Santana [fragmento]




Ele odiava mofo e teias, eram o tipo de coisa que lhe dava engulhos. E ele sabia que a própria palavra “engulhos” – até mais do que sentir engulhos – era pura frescura, mas a verdade é que ele era assim. Ou assim decidiu que seria depois de muito se aventurar em náuseas silenciosas. Mas mesmo odiando mofo e teias, tinha que alcançar aquele exemplar raro das Canções do António Botto lá atrás dos manuais de bricolagem, dos tratados de Tordesilhas, das enciclopédias de capa dura – atrás de tudo, atrás inclusive do mofo e das teias. Fechou os olhos, prendeu a respiração, mergulhou por baixo das bancadas de livros mal equilibrados e rastejou. Esticou o braço e foi no tato. Pimba! Pegou. Rastejou de volta, abriu os olhos e soltou o ar. Procurava esse livro há tempos, jamais conseguira encontrá-lo novinho numa livraria novinha sem mofo e teias. Decididamente não entendia os que diziam haver algum charme nesses sebos do centro do Rio.
- Quanto é?
- Cem reais.
- Mas eu quase morri sufocado, arrisquei minha vida para achá-lo jogado lá embaixo das estantes. Vai ver você nem lembrava mais que ele existia.
- Ainda bem que o senhor me fez o favor de lembrar... Cem reais!
Enquanto o sovina embrulhava o livro naquele papel chinfrim rosa claro, abriu a carteira para pegar o dinheiro e lembrou que ainda precisava passar no mercado, comprar ração para o gato e uma coisinha qualquer para a noite. Um desses pratos semiprontos e uma verdura para uma salada já estariam de bom tamanho. Tudo está de bom tamanho quando se aprende a adaptar-se à solidão. Nela nada é de mais ou de menos, tudo parece moldar-se com precisão aos espaços vazios: na falta absoluta, ninguém suspeita dos vãos. Parou à saída do sebo e caçou os óculos escuros na bolsa. Colocou-os e sentiu-se bem. E protegido. Vamos lá, cidade! Olhar para o que quer que fosse, para quem quer que fosse, sem que seus olhos o denunciassem, dava uma despudorada sensação de segurança. Atravessou a ruazinha de paralelepípedos e ganhou a calçada oposta.

Para ler o restante, adquira o livro Diário dos vivos e outros escritos, publicado pela Editora Penalux, set. 2019, no site a seguir:




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