Nosso caso é uma porta entreaberta
E eu busquei a palavra mais certa
Vê se entende o meu grito de alerta”
só
temos mais três minutos, ela disse. bem baixinho, mas sei que foi isso que ela
disse, sei que foi isso que ouvi. mas o que dá para falar em três minutos? inabalável,
ela só suspira, o que vem a ser o mesmo que dizer não-há-mais-nada-a-fazer. e
ela não faz mais nada. só não acende um cigarro porque não fuma. nunca fumou. ou
pelo menos não ativamente com os próprios dedos e boca, quando muito
passivamente com os próprios pulmões e narinas. quem mandou se casar com um
sujeito que queima uns três maços por dia? mas aqui neste lugar, nem eu nem
ela, que nunca fumou, podemos fumar. e, sentada ao meu lado, ela abaixa a
cabeça até os joelhos e segura os próprios tornozelos. na impossibilidade de um
cigarro, faço igual. mas não enfio a cabeça entre os joelhos como ela, fico
olhando para ela. certamente ela não quer isso. tá na cara, dela ou minha?, que
ela não quer isso. eu também não quero isso, tá na minha cara. olha pra mim!, eu
digo, quando na verdade queria mesmo era dizer: olha pra mim, porra! ela tira a
cabeça de entre os joelhos e passa a me encarar também. não importa o que você
diga, é o fim. e sua voz é sussurrada nessa posição quase fetal em que estamos.
ela ainda tem um pouquinho de mousse no canto da boca, que eu limpo com o dedo.
ela sorri quando lambo meu dedo com aquele restinho de talvez nosso último
jantar juntos. ela sorri, nem tudo está perdido. dois minutos e meio agora,
querido! e sua voz volta a ficar sussurrada e ela não sorri mais. que ela, e
não sei se todas as outras mulheres também, passa de um sorriso a um
não-sorriso em questão de segundos, e vá você entender como isso se dá em um tão
curto espaço de tempo.
em
um tão curto espaço de tempo eu tenho que dizer a essa mulher sentada ao meu
lado o quanto eu a amo? é isso que ela espera de mim? mas essa nossa viagem de
férias, depois de anos, foi para lhe mostrar justamente isso. foi um
sacrifício? foi. largar assim o escritório. mas o que o sujeito não faz, quando
a esposa desfere à queima-roupa um lacrimejante
meu-bem-a-gente-nem-sequer-viaja-mais? talvez ela espere que eu admita que ela
sempre esteve com a razão. por que trabalhar tanto, de segunda a sábado às
vezes, varando a noite quase sempre, e perder tanta coisa legal dessa vida? e
por que também só agora estou preocupado em talvez lhe dar razão? será que ela
tem razão? tá bom, reconheço: sempre fui ambicioso, sempre quis crescer naquela
merda de empresa. e cresci. caralho, como eu cresci! temos uma boa vida, um
apartamentão de frente para a lagoa rodrigo de freitas. e quando dá, eu a levo
para jantar nos restaurantes mais caros, que são os que ela mais aprecia. nos
fins de semana sempre dá, depois do cinema, do teatro ou do show, que é sempre
ela que escolhe. não importa se a lotação para o dia já esteja esgotada. com o monte
de gente importante que conheço, sempre consigo dois ingressos. porque eu a amo.
e portas sempre se abrem quando se tem dinheiro e quando se ama. e por isso eu
trabalhava tanto. eu precisava agradá-la, satisfazê-la. eu precisava mostrar
que a amava. tinham aqueles urubus lá da empresa que sempre perguntavam por
ela. e eles eram podres de ricos, cobriam suas esposas de luxo e eu precisava
fazer o mesmo com a minha. mas eles percebiam que eu era diferente deles. na
hora do almoço, eles sempre davam suas escapulidas para trair as esposas com
alguma esposa de outro amigo podre de rico. eu não, eu preferia ligar para a
minha e, quem sabe, quebrar a rotina com um convite inesperado para um almoço.
ela quase nunca podia: sempre num shopping ou no salão ou no clube com as
esposas dos meus amigos podres de ricos. isso eu admito que admirava nela:
sabia como ninguém estabelecer os laços sociais com la crème de la crème do
high society carioca. e tudo isso não sei se ela está ouvindo. porque
também não sei se estou lhe dizendo ou se estou só pensando. porque, em
situações como esta, tudo passa muito rápido pela cabeça da gente: vá lá saber
o que a gente pensa e o que a gente diz, ou o que a gente diz e não pensa, ou
pensa que pensa e não diz. quinze anos de casados para terminar desta maneira
mais besta? dois minutos e quinze segundos agora!
calma,
calma! não tão rápido assim! ela vira o rosto para o outro lado, mas mantém a
cabeça encostada nos joelhos, e presta atenção no alvoroço do ambiente. vira de
novo o rosto para mim e está serena. ela destoa do ambiente. quando fala, é
sempre sussurrando. como essa mulher pode ficar tão serena assim? eu aqui
desesperado, inconformado, buscando um fio de esperança. não quero que acabe
assim! amor, tudo vai ficar bem. olha só, acredite em mim! nossos rostos estão
tão próximos que eu me vejo refletido em suas retinas, que eu sinto o seu
hálito de camarão gratinado misturado com mousse de limão. eu quis pedir o
vinho mais caro, mas ela disse que esta noite não. não é coisa de homem isso de
intuição, mas desde cedo, no café da manhã no hotel, eu vinha percebendo uma
nuvem de desesperança em seu olhar. aquele tipo de olhar que nós homens nunca
questionamos, porque sabemos que está pressentindo algo que escapa ao nosso
entendimento de homem e nos restringimos a elogiar o croissant e a geleia. e agora,
no jantar, ela não quis vinho. mais uma vez como se estivesse pressentindo
algo. e vejo a mesma nuvem de desesperança do café da manhã neste momento em
seus olhos cujas retinas me refletem. e tenho pouco mais de dois minutos para
lhe dizer que não é o fim, para lhe provar que a amo. mas ainda busco as
palavras para aplacar a sua descrença e lhe dizer que não é o fim. eu que
sempre fui tão bom com as palavras, eu que conseguiria vender um terreno na lua
para os incautos do mercado imobiliário, eu estou buscando palavras e elas não
vêm. talvez eu mesmo já esteja começando a acreditar que é o fim. puta que
pariu, não! tenho que continuar tentando. dois minutos agora, querido!
amor,
você está hiperventilando. segura a minha mão! eu estou aqui com você, eu
sempre estive. e agora ela dá um meio sorriso que me dói mais que tudo, dói pra
cacete, dói mais que o não-sorriso e que poderia ser traduzido por
não-fale-bobagens-a-essa-altura. não, eu quase nunca estive “aqui”. e agora
estou querendo estar nestes dois últimos minutos que foi o tempo que ela disse
que ainda temos. eu queria gritar um puta-que-pariu-mas-que-merda a plenos
pulmões. gritar talvez a tirasse deste quase torpor. se fosse pra terminar tudo
assim, que pelo menos berrássemos. ela só faz um não com os olhos. pra quê? vai
adiantar de quê? não vale a pena. desisto da ideia de berrar e tento manter a
linha. então procure não respirar tão rápido assim. não tira os olhos dos meus
olhos, por favor, eu te peço. esquece esse alvoroço em volta. aqui somos eu e
você. tá vendo? você já está mais calma, parou de hiperventilar. isso é só uma
tempestade, todo mundo já passou por isso. quando passar, você vai ver, tudo
vai voltar ao normal. eu vou trabalhar menos, te juro. a gente pode até pensar
naquele bebê. você ainda quer ter um bebê, não quer? então. eu mudo meu
escritório para o quarto de hóspedes, não preciso de tanto espaço assim. e no
lugar do escritório a gente monta o quarto do bebê. você sabe do medo que sempre
tive de ter um filho porque sempre achei que nunca seria um bom pai. aquela
infância difícil que tive, te contei tantas vezes. mas agora eu juro, eu
toparia. então se acalma! senão você vai voltar a hiperventilar. mas se você
não quiser transformar o escritório no quarto do bebê, a gente pode mudar de
apartamento também. você sempre reclamou mesmo do cheiro ruim da lagoa, as
janelas sempre fechadas. você vai ver, tudo vai ser diferente. um minuto e meio
agora!
um
minuto e meio e ele está tentando me convencer de que não é o fim. a coisa toda
poderia acontecer sem esse drama típico dos homens sem colhões, quando eu
insisto que já era, que tudo vai acabar. sempre foi assim, não seria diferente
agora: ele vai continuar tentando me convencer do contrário. por que ele está
passando esse dedo na minha boca? que nojento, agora ele está lambendo o dedo!
será que ele não consegue ver como tudo está agora? quinze anos de casamento,
mais os cinco de namoro, e a palavra final tem sempre que ser a dele. e falar
de bebê agora? esse idiota já parou para reparar com quantos anos estou? só agora
ele vem me falar em ter um bebê? ai, como eu queria mandá-lo pra puta que o
pariu. mas pra quê? vai adiantar de quê? não vale mais a pena. e esse olhar
dele dentro do meu! isso só está me angustiando mais. e esta posição é
incômoda, vou hiperventilar de novo com toda a certeza. só uma tempestade, todo
mundo já passou por isso. vontade de dar um tapa na cara desse filho da puta me
chamando de amor. aqui mesmo, na frente de todo mundo, pra ver se ele acorda
para a realidade das coisas. mas já tem muito alvoroço em volta. um bebê agora.
conto para ele dos dois abortos que fiz sem ele saber? a desculpa era sempre a
infância difícil que ele teve. e que ele precisava trabalhar muito para ser
alguém na vida. frouxo mentiroso! a esposa do médico dele me contou em segredo
e pediu que eu jurasse nunca revelar para ele que eu sabia. ele é e sempre foi
estéril. como esse idiota pensa em ter um bebê agora? será que ele passou a
acreditar em milagres justamente agora? bem, ele acredita em muitas coisas
ridículas. ele acredita mesmo que está contribuindo para o desenvolvimento
econômico do país. um país que ele nem nunca conheceu de verdade. pra ir à
padaria, ele vai de carro. praia de ipanema? mas nem pensar! olha a quantidade
de pobres que tomou conta daquilo. sim, traí ele sim, mais de uma vez. quando
casamos, eu ainda o amava. aí ele começou a ficar cada vez mais importante, escrotamente
importante. e cada vez mais rico. da parte do cada vez mais rico não posso
dizer que tenho alguma coisa do que reclamar: quem não gosta do luxo? subiu
como um foguete naquela empresa. caralho, como ele subiu! reunião quase toda
noite com empresários de todo o mundo. e não diferia em nada do típico
clichezão de executivo: chegava em casa, cheirava uma carreira, reclamava do
dia, do mercado, das ações, tomava uns três uísques, depois um banho, jantava, desabava
na cama e roncava a noite inteira. foi quando comecei a dar para os amigos dele
que não tiveram infância difícil e não precisavam se matar de trabalhar para
provar que eram merecedores de estar onde estavam. às vezes, coisa rara, ele
até me ligava no início da tarde, com a voz melosa de quem queria fazer uma
surpresa à esposinha aqui, para propor que almoçássemos juntos. mas, quase
sempre nessas ocasiões, algum amigo dele podre de rico já tinha se antecipado com
uma proposta semelhante. eu inventava um encontro qualquer com a esposa de
algum amigo dele podre de rico, quando, na verdade, o amigo dele podre de rico
estava me comendo naquele exato momento. e ele não para de me olhar com essa cara
de panaca que nada percebe. não, querido, não vai ficar tudo bem. é o fim.
aceita isso! então só mais um minuto agora, querida?
em
um minuto a gente não faz nada. só aceita que é o fim. depois de quinze anos, é
o fim. gente, e o que é essa cara dele de apaixonado ainda? que idiota! não, eu
não vou me iludir com suas palavras. e eu tô bem, precisa segurar a minha mão
não. quem está desesperado aqui é você. aliás, ele esteve desde o café da
manhã. e eu sabia por quê. e por isso ele quis pedir vinho neste que talvez seja
nosso último jantar juntos. ele sempre foi medroso mesmo: medo de altura, medo
de lugares fechados, medo de voltar a ser pobre, medo até de gente. eu tinha
visto a sua ansiedade no café da manhã no hotel. e me dava um tédio desgraçado
aquela cara dele de cagão. mas eu disfarçava, sempre disfarcei bem. e ele
talvez estivesse achando que era desânimo, desesperança, coisa de mulherzinha,
coisa de dondoca. porque ele fez de mim uma dondoca, esse filho de uma puta.
uma vaca de uma dondoca que dava para seus amigos executivos podres de ricos.
eu nunca gostei daquele apartamentão e não é por causa do cheiro ruim que vem
da lagoa, e sim porque eu tive que dar o cu para um dos amiguinhos dele podres
de ricos. só assim o amiguinho dele podre de rico lhe venderia o apartamento
por um preço bem abaixo do mercado. eu não precisava ter dado o cu pro
amiguinho dele podre de rico. ele que se fodesse de trabalhar até juntar a
grana para pagar o preço que o apartamento realmente valia. mas o amiguinho
escroto dele precisava se livrar do imóvel, a receita estava no pé, e ele
precisava de um apartamentão como aquele para mostrar para os seus amigos executivos
podres de ricos que ele também era um deles. o que é um cu doído por três dias,
quando é um apartamentão na lagoa que está em jogo? foi a primeira vez que eu o
traí. e não posso dizer que foi fácil: não tanto pela dor no cu, que depois até
tomei gosto por essa coisa de ser a cadelinha dos amigos dele podres de ricos,
mas porque eu ainda o amava, amava-o muito. que coisa mais ridícula isso, eu já
tê-lo amado um dia!
mas
que importância tem tudo isso agora? eu estou tentando dizer para esse filho da
puta que é o fim. o medroso não quer aceitar, vem me falar de amor e bebês para
me convencer do contrário. não por mim, que não acredito muito nesse papo de
segunda chance, mas por ele. se bobear, já se borrou todo nas calças. eu queria
um voo com escalas, o trajeto seria diferente. mas ele decidiu por este voo
direto. disse que queria chegar cedo em casa, para amanhã estar bem disposto
para voltar ao escritório. uma semana de férias. uma semana depois de anos!
queria provar que ainda me amava. vê se pode! quando eu reclamei que a gente
nem viajava mais, eu não estava pensando em passar uma semana num resort
caríssimo e chato. um hotel mais modesto perto do mar, comer camarão no espeto
e assistir ao pôr-do-sol com os pés enterrados na areia já estaria de bom
tamanho. ele foi avisado de que este voo direto passaria por áreas de
turbulência. mas ele não quis o com escalas. o voo com escalas era por uma
companhia que não lhe foi muito bem recomendada pelos seus amigos executivos
podres de ricos. já esta companhia do voo direto servia um jantar muito mais
gourmet. e então estamos aqui, a cabeça colada nos joelhos, um olhando no olho
do outro e sentindo o hálito de camarão gratinado e mousse de limão um do
outro. e em menos de meio minuto o piloto vai tentar um pouso de emergência no
meio da mata. uma turbina já foi embora, a outra deixa um rastro de fogo pelo
céu. é o fim, eu tenho certeza disso. mas se sobrevivermos, eu juro que finalmente
dou um pé na bunda desse babaca.
Edmilson Borret - janeiro/2020
Gostei. Há quem possa dizer que é violento, mas o achei, em boa medida, cruel (sei que a crueldade pode ser uma das faces da violência. Cruel ao mesmo tempo que o achei hilário, sarcástico e não só por causa do final.
ResponderExcluirVlw, Jorginho!
ExcluirPuta que pariu! Burguesia em um piscar de olhos, felicidades não alcançadas em torno de um coquetel e mariscos, a isca para uma vida com aroma de aspargos e gosto de ostra que não tem gosto, e sim textura...
ResponderExcluirAcho que foi um elogio, né? rs
ExcluirDizer o quê? Sensacional!
ResponderExcluirJá disse. :)
ExcluirGenial! O texto coloca o leitor na pilha da ansiedade da cabeça dos personagens, o que prova uma aceleração do ritmo da leitura para tudo se espatifar no final. Amei.
ResponderExcluirVlw, unknown. :)
ExcluirOnde se lê "prova" leia-se "provoca".
ResponderExcluirGostei muito. Conseguiu me entreter do início ao fim. E devo dizer, que isso, nesses tempos não é tarefa fácil comigo. E, o final é bem surpreendente. Parabéns.
ResponderExcluirQue bom que gostou, Claudinho!
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