Deixemos de coisas, cuidemos da vida
rachaduras
na parede. ai de nós! se fixo os olhos por muito tempo nas rachaduras, sou
arrastada pelas mínimas fendas, tragada pelo cimento do reboco e pelos tijolos,
e me sinto mais presa que algum dia já tenha sido, emparedada. as casas e suas
paredes envelhecem, como envelhecem a cara e o corpo da gente. e tudo se
empareda. se algum dia, em minha velhice, eu sentir saudades de alguma coisa,
acho muito improvável que seja desta pobreza em que vivo. mas que também ando
tão desatenta às coisas, que acho que não chegarei a ter a idade da velhice para
sentir saudades, aquela idade em que nos sentamos conformadamente em uma
poltrona e agradecemos pela saúde dos filhos e netos. ando tão desatenta às
coisas, que nunca sei onde as coisas vão dar. uma desatenção que pode tornar
fatal qualquer atravessar de rua, qualquer buraco numa calçada, qualquer
encontro inesperado: uma quarentena dos sentidos – todos eles anestesiados. não
sei se teria sido mais prático atirar-me nas águas da baía, no tempo em que
ainda podíamos sair de casa, no tempo em que eu ainda não tinha os sentidos
anestesiados. e a água tépida ou gelada faria a diferença, relaxariam ou
retesariam meus nervos: na segunda opção, provocando uma espécie de desconforto
que me desencorajaria do intento. agora o inverno já vem vindo e não quero,
deus me livre, morrer de água gelada. não agora. não pensem que estou louca.
ainda não estou: eu sei que o mais esperado é que eu apenas dissesse que não
quero morrer, mas quem sabe exatamente o que quer na vida? a minha colega de
trabalho parecia saber o que queria pelo menos para aquela noite, um mês atrás,
e debochava de mim, porque eu disse que não ficaria no centro para a roda de
samba. tão jovem e já tão velha! pensei em lhe responder que se eu fosse velha,
poderia ao menos sentir saudades; mas respondi apenas que não sabia sambar. uma
preta, nascida em madureira, que não sabe sambar? vê se pode isso, meu deus! e
gargalhava. e ela achava normal gargalhar disso. e talvez até eu mesma já me
acostumasse e começasse a achar normal, como me acostumei a me tornar ausente
desse tipo de discussão. vê se não dá mole com esses gringos que ainda ficaram
do carnaval! não viu as notícias lá de fora? você tá louca, mulher? os gringos
é que pagam cerveja a rodo. a minha colega era nova no trabalho, sabia pouco de
mim e eu pouco dela: somos pretas as duas. ela mora em jacarepaguá e eu em
campo grande. ela não nasceu em madureira e sabe sambar. a casa em que nasci,
em madureira, não tinha rachaduras na parede. desde muito pequena, no entanto,
me acostumei às rachaduras nos afetos, veladas ou não, o que também me fazia
sentir-me emparedada. mudar para campo grande foi uma decisão minha, quando
comecei a transição. pela minha mãe, viveríamos até morrer no mesmo quintal,
junto ao restante da família. um dia eles vão ter que te aceitar, ela repetia.
minha mãe estava magoada com a família, mas termos que passar a pagar aluguel
não estava em seus planos. para eles eu já morri, mãe, ou o daniel morreu.
então não fazia mais sentido viver no mesmo quintal, junto ao restante da família.
ela aceitou e me deu razão. vou pra onde você for então. você é minha única
filha.
pouco
tempo depois de a quarentena ter sido decretada, fomos dispensadas do trabalho
na loja, no mesmo dia, eu e a minha colega que não nasceu em madureira mas sabe
sambar. fiquem em casa!, foi só o que disseram. três semanas em casa e eu tenho
a sensação de que as rachaduras na parede parecem maiores. minha mãe diz que,
um dia, tudo vai voltar ao normal. ela não percebe que a normalidade agora não
se reconhece no normal de antes. o vírus penetrou no que era a normalidade e a
fez rachar de dentro para fora. acho que minha mãe não repara nas rachaduras
como eu. acho mesmo que ela não me vê, embora eu saiba que ela me ama muito.
porque se ela me visse de verdade, ela veria que tudo passa por uma
redefinição. me ama, eu sei, mas é mãe: mães têm medo. o seguro-desemprego
ainda não saiu, a ajuda do governo também não, o aluguel vence daqui a uma
semana, a ração do gato acabou há três dias. é seguro você sair na rua? e
quando foi, mãe? vi na televisão que tem um país lá fora que estão atirando nas
pessoas que andam pelas ruas. aqui também atiram, mãe, só que por outro motivo.
e não tem como adiar mais: precisamos comer e o gato também. sua tia me contou
que lá na igreja que ela vai estão dando cestas básicas. se a gente ainda
morasse lá. mas não moramos mais, mãe. e, além disso, nessas igrejas eles dão
com uma mão e tiram com a outra. minha mãe ainda sentia saudades de morar em
madureira, sobretudo agora que as ruas estão todas quase desertas. lá, pelo
menos, as ruas, embora também desertas, eram conhecidas desde a infância. eu
não gosto de estar aqui emparedada, estive emparedada quase a vida inteira. e
precisamos comer. daqui até o mercado, são só uns quinze minutos a pé.
coloco as luvas descartáveis, a máscara, pego a bolsa, a carteira e conto o
dinheiro que ainda restou. antes de sair, reparo mais uma vez nas rachaduras na
parede. cada vez que preciso sair à rua, quando retorno, parece que elas
aumentaram. nada escapa às rachaduras, ao desgaste, ao estranhamento. ai de
nós!
tudo
fechado! todas as portas arriadas! com exceção do mercado e de algumas
farmácias. as poucas pessoas na rua andam encolhidas, apavoradas. a vida e os
movimentos ao redor me parecem mais espessos. tento manter a calma e não me
entregar ao mesmo movimento dessas pessoas, semelhante ao de répteis mascarados
que se arrastam na espessura deste tempo estranho. a um metro e meio umas das
outras, elas se olham com desconfiança na fila do mercado. para mim olham com
mais desconfiança ainda. será que elas me adivinham? ou é mesmo só porque sou
preta? talvez nem tudo tenha fugido à normalidade.
demorei
mais do que pretendia na fila para pagar as compras. daqui a pouco é a hora do
almoço. no fundo do prato, comida e tristeza. medo, medo, medo, medo, medo,
medo. duas sacolas em cada mão. como atender esse celular tocando logo
agora? deve ser a colega do trabalho que não nasceu em madureira, mas que sabe
sambar – uma das poucas pessoas que ainda me ligam. todos os dias, pela manhã,
ela acha que apresenta os sintomas da nova doença; à noite, liga de novo
dizendo que era coisa da cabeça dela. ela pode esperar até eu chegar em casa.
tenho pressa. mais quinze minutos a pé até em casa. quinze minutos é muito
tempo. qualquer tempo numa quarentena acaba sendo muito tempo. tempo que dá
tempo, até, de lembrar dele: coisa que eu vinha evitando. a vida no mesmo
quintal, junto ao restante da família, foi a minha vida até onde me lembro de
uma realidade que era muito pouco; ainda assim era a minha realidade. crescemos
juntos, primos. muitas vezes tivemos a sorte de ter uma infância feliz, apesar
dos moleques da rua que desde sempre mexeram comigo. acho que eles, os
moleques, achavam uma ousadia eu querer ser feliz, sendo diferente deles. ele
dizia que sempre iria me proteger dos moleques. e eu sempre o amei por isso. e
não só por isso. ele dizia que eu era só dele, ninguém mais me tocaria: nem os
moleques da rua, nem os moleques e adultos do quintal. quando se é criança e
adolescente, ainda se tolera que dois primos estejam sempre juntos pra cima e
pra baixo, como unha e carne, descobrindo as coisas que nessa idade se
descobrem. por volta dos dezessete anos, foi quando começaram os fuxicos na
família. ao ponto de a minha tia um dia chegar e dizer na cara da minha mãe: o
daniel não é boa companhia para o meu filho. e a gente foi obrigado a parar de
andar sempre juntinhos pra cima e pra baixo. minha tia tratou de arrumar uma
namoradinha pra ele, lá na igreja que ela frequentava. cada vez que eu via os
dois juntos, o daniel dentro de mim morria um pouco. foi quando decidi pela
transição: não era só no quintal que eu não cabia mais. e foi quando a família
passou a me achar uma aberração. e a vida no mesmo quintal, junto ao restante
da família, começou a se tornar insuportável.
não
temos homem em casa. vivemos agora só eu e minha mãe. por isso sou eu que tenho
que me arriscar a sair nas ruas: ela já tem idade, está no grupo de risco da
nova doença. o risco do meu grupo desde sempre foi outro: existir. você não viu
na televisão que todo mundo deve ficar em casa? onde eu estou, estanco, como
congelada: as duas sacolas em cada mão, a cabeça baixa. as ruas deveriam estar
desertas. é mesmo a voz dele tanto tempo depois? por que não atendeu o celular,
quando te liguei agora há pouco? ele adianta o passo e se coloca na minha
frente. levanto a cabeça. sim, é ele! como você sabia onde eu estava? não
sabia. estava indo até sua casa e por acaso te encontrei no caminho. me deixa
te ajudar com as sacolas! mas você também não devia estar pelas ruas e tão
longe de casa, ainda mais agora que está casado. eu sei. inventei uma desculpa
em casa, precisava te ver. por quê? tenho medo de que demore muito para que
tudo volte ao normal, precisava te ver para ter aquela sensação de antes. então
você também não vê as rachaduras? do que você está falando, daniel? daniela,
por favor! ah, desculpe. mas posso, ao menos, ajudar com sacolas? te acompanho
até em casa. com essas ruas desertas, nunca se sabe, né? ele não está usando
luvas nem máscara: as mãos continuam lindas, assim como a boca. seu olhar, no
entanto, está mais sereno; como se nunca tivéssemos nos separado, como se ele
não tivesse mais medo de nada, nem da minha tia, nem do que o mundo fale. e, de
repente, as ruas parecem mais desertas ainda que no caminho da ida ao mercado.
somos só eu e ele, como antes, em nossos esconderijos da infância e
adolescência. sinto uma enorme vontade de beijá-lo, como antes. ninguém veria,
as portas e janelas fechadas. minha tia, lá em madureira, não veria, nem a
esposa dele veria. o mundo está parado. esta rua deserta em campo grande é
parte de um mundo em suspenso, em que tudo se tornou mais espesso, e as pessoas
viraram répteis. eu gosto muito de como você está agora. que transformação,
hein! é, mas eu ainda não sei sambar. uma pretinha que não sabe sambar? e rimos
aos montes, como antes. como chegamos a este ponto? vai saber. senti muito a
sua falta. eu também. o caminho de volta, que deveria levar quinze minutos como
o da ida, já chega a quase quarenta minutos. e por mim demoraria mais. mas eu
preciso chegar em casa. está quase na hora do almoço. a gente se olha, se
toca e se cala. moço, moço, moço, moço, moço, moço. fico aqui, não vou
entrar. a tia não vai poder me ver. é, acho melhor mesmo. pego as sacolas de volta e
ainda fico um tempo parada no portão, enquanto o vejo se afastar rua afora.
lindo, como antes.
por
que não atendeu o celular, quando te liguei agora há pouco? os olhos da minha
mãe estão inchados, quando entro em casa, como se ela estivesse chorando há
horas. calma, mãe! demorei porque tinha fila no mercado. e não atendi o celular
porque estava com as duas mãos ocupadas com as sacolas. não precisava ficar
nervosa e chorar por isso. não é por isso que estou chorando, sua tia ligou.
largo as sacolas no chão, preocupada. será que ela adivinhou que ele veio atrás
de mim? e o que ela queria agora, mãe? seu primo. o que tem ele? tiveram que
correr com ele ontem, às pressas, para o hospital. mas não tinha vaga, tudo
lotado. ele estava muito mal, já não conseguia nem respirar direito. não
resistiu. faleceu agora há pouco. corro até o portão. quero ter a certeza de
que minha mãe se enganara, ela tinha entendido errado o telefonema. olho para a
rua por onde, minutos antes, eu o vira se afastar, na esperança de ainda poder
ver seu vulto quebrando a esquina lá longe. a rua está vazia. filha, volta pra
dentro! você já se arriscou demais na rua hoje, não quero perder você também.
que
desatenção medonha foi essa que me tomou? que coisa descabida! um carro poderia
ter me atropelado, quando eu atravessasse uma rua. eu poderia ter torcido, ou
mesmo quebrado, um pé num buraco da calçada. que desatenção foi essa a minha?
acho que não chegarei a ter idade para sentir saudades. o peito deserto, a
mão parada, lacrada, selada, molhada de medo. nada vai voltar ao normal,
mãe! que desatenção! os corações ficarão em quarentena por mais tempo que
imaginávamos, mãe. os corações vão virar pedra, mãe. pedra em que se bate até
aparecerem rachaduras. olho de novo para a parede. ai de nós!
Achei interessante a transposição desse mito brasileiro popular de visita pro espírito para a realidade de um amor trans.
ResponderExcluirBuscou dignidade no popular, o contrário do que às vezes é feito.Busca-se dignidade nas noções da elite...
Que bom que tenha gostado, Vinicius Tobias (Larvas Poesia).
ExcluirBonito. Pesado. Necessário.
ResponderExcluirVlw, Dife!
ExcluirTextos que fazem viajar, em realidade, e nos tocam profundamente. "Ai de nós"... Melhor para nós! Faz-se necessário. Louvável literário!:)
ResponderExcluirVlw, Unknown! :)
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