diário dos vivos [fragmento]
XX.
é de estranhar que ainda haja vida por aqui. logo aqui onde
ela é tão menosprezada. a vida é vingativa, sabe? se você não a paparica, ela
te dá as costas, te abandona. é como deus. tem algo de ontologicamente infantil
nisso: a vida, assim como deus, não sabe ainda lidar com perdas. mas eles
vieram, os de casa. e por isso os chamo os de casa. porque eles pertencem a
essa casa. essa casa que meu pai construiu com as próprias mãos desde o
alicerce. essa casa era cheia de vida. essa história de fazer pouco caso da
vida começou sei lá quando. acho que quando soube do abismo. se não
precisamente ali, talvez mais para trás, quando já o pressentia. o verbo
abismar quer dizer muita coisa. meu pai dizia que quem diz muita coisa pode às
vezes não estar dizendo nada. não é o caso do verbo abismar: ele diz dizendo.
daí que ele pode significar algo caindo ou jogado no abismo, mas pode também
querer dizer o estado de maravilhamento diante de algo. pode significar o ato
de se devotar a algo, mas também o ato de se recolher, de se ensimesmar.
maravilhar-se, devotar-se, recolher-se, ensimesmar-se. é como abismar-se. eu me
abismo. tu te abismas. nós nos abismamos. um verbo pronominal. que diz também
de uma reflexividade. e eu sempre vi as ações reflexivas como algo que se dobra
sobre quem as pratica. como uma manta, uma cobertura, descrevendo um arco.
abismar-se é dobrar o abismo sobre si.
Para ler o restante, adquira o livro Diário dos vivos e outros escritos, publicado pela Editora Penalux, set. 2019, no site a seguir:
https://www.editorapenalux.com.br/loja/contos/diario-dos-vivos-e-outros-escritos
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